Jogos olímpicos, estupro coletivo, queda de ciclovia, calamidade pública, eleições e prisão de ex-governador. Todas essas experiências foram vividas pelo Rio ao longo de 2016. A uma semana do fim do ano, convidamos pessoas que participaram de alguma forma de momentos decisivos da cidade nos últimos 12 meses a darem seus testemunhos sobre um dos períodos mais agitados dos últimos tempos
Foto: Protesto contra olimpíada no dia da abertura dos jogos, na Tijuca (Tomaz Silva/Agência Brasil)
O Rio foi do céu ao inferno em 2016. No ano em que sediou a primeira edição dos Jogos Olímpicos na América do Sul, a cidade viu seus hotéis ficarem lotados poucos dias depois de ter sido palco de um estupro coletivo e do Governo do Estado decretar calamidade pública por problemas financeiros. Isso tudo após a queda de uma ciclovia recém-inaugurada em abril, antes de eleições que marcaram o fim de uma era de oito anos em outubro e em meio a investigações que levariam à prisão de dois ex-governadores em menos de uma semana em novembro. Nesta quinta (22), Garotinho se encontra solto e Sergio Cabral continua detido. Mas a lição que 2016 nos deixa é a de que tudo, em pouquíssimo tempo, pode mudar.
A uma semana do fim de ano, convidamos pessoas que participaram de alguma forma dos momentos decisivos da cidade nos últimos 12 meses a darem seus depoimentos. Confira a seguir os melhores trechos dos testemunhos.
Eu estava na praia. O mar estava alto. Por volta de 11h30, minha sogra ligou para minha mulher e avisou da queda da ciclovia. Minha preocupação inicial foi com os ciclistas. Era feriado e imaginei que o local estivesse cheio. Afinal, a ciclovia é uma atração, um dos lugares mais bonitos da cidade ainda hoje. Fui para casa, liguei para o CREA e, à noite, estive no local. Após as investigações, concluímos que um ciclone extra-tropical na Argentina gerou ondas mais fortes que a média no Rio naquele dia. Com o fenômeno, o intervalo entre as ondas caiu de 12 para 8 segundos. Isso fez com que o impacto do mar na Gruta da Imprensa aumentasse e gerasse uma coluna de água capaz de derrubar a ciclovia. Acho que a principal lição que ficou é a importância do planejamento. Obras não podem ser feitas às pressas. Além disso, a empresa responsável nunca tinha construído algo do tipo. Na minha opinião, projetos assim devem ser elaborados com antecedência e executados por gente com experiência.
Manoel Lapa, engenheiro civil e coordenador da comissão do CREA-RJ que analisou as causas da queda da Ciclovia Tim Maia, em São Conrado, em 21/04/2016
Eu estava trabalhando de casa quando soube do caso e não me liguei muito. Só descobri que era no Rio na quarta (25/5). Naquele momento, me preocupei com a cabeça dela. Eu só pensava ’Quantas meninas não passam por isso?’. Não quis ver o vídeo até a sexta (27/5), quando conheci a jovem pessoalmente. Depois, veio a investigação problemática. Esse caso me abalou muito. Fiquei mal, porque tive muito contato com a história. Descobri que nada do que eu faça como militante ou jornalista é capaz de sanar todos os problemas de todas as meninas. E o caso também foi um estalo para passarmos a pensar mais nessas meninas. Eu comecei a questionar o meu ’feminismo’, já que elas não estavam sendo atingidas. Mas, ao mesmo tempo, isso nos mostrou que o que fazemos tem algum efeito. Uma rede de apoio foi criada por muitas mulheres que já se dão conta da importância de estarmos juntas. É fundamental continuarmos a debater a cultura do estupro e suas manifestações, inclusive as mais sutis.
Lola Ferreira, militante feminista, jornalista e autora da monografia " Entendeu ou não entendeu? Analise da linguagem jornalistica na cultura do estupro a partir do crime coletivo na Zona Oeste do Rio de Janeiro", sobre o estupro coletivo de uma menina de 16 anos no Morro da Barão, na zona oeste, em 21/05/2016
Sexta é dia de reunião de servidores na UERJ. Quando o Dornelles decretou calamidade, eu estava lá. Foi um encontro horroroso, muito triste. Durante a greve, tínhamos obtido promessas de mais verbas e reajuste das bolsas dos alunos. Com a calamidade, entendemos que tudo tinha ido pro ralo. Fiquei espantada com o governo não se importar com Uerj, opinião pública, nada. Antes, eles disfarçavam. Nesse dia, ficou claro que esses caras cagam para direito, educação, universidade. No início do ano, a gente ainda recebia a maior parte do pagamento no mês. Hoje, nem isso. Trabalhei em novembro e a primeira parcela, que cai sexta agora (23), é de 370 reais só. Eu comecei 2016 sem imaginar que ia acabar o ano sem salário. A lição que ficou é que, sem resistência, não há negociação. E que a unidade dos servidores é um desafio. Na Uerj, somos contra a violência e a militarização da polícia. Por isso, se unir a setores da segurança é difícil. Mas, nesse momento, estamos juntos.
Lia Rocha, professora da Uerj, sobre o decreto de calamidade pública por conta de dificuldades financeiras em 17/06/2016. Hoje (22), o Estado avisou que não vai pagar os servidores amanhã
Realizamos uma olimpíada memorável. Por mais de três semanas, tivemos taxas de ocupação em torno de 95%. Alguns bairros, como a Barra da Tijuca, chegaram a bater 100%. Antes concentrada na Zona Sul, a atividade turística ganhou dois novos espaços: a Barra e a Zona Portuária, totalmente modernizada. Diferentemente das cidades que receberam a Copa do Mundo e hoje passam por dificuldades, temos o diferencial e a força da marca Rio. E, passado o evento, uma cidade completamente renovada. O número de quartos saltou de 29 mil em 2011 para mais de 50 mil hoje. Estamos cientes do risco da superoferta de leitos e, por isso mesmo, mais bem preparados para enfrentá-lo. Chegamos em 2017 com uma realidade totalmente nova. A instabilidade política e a crise econômica dão caráter de urgência a questões antes em banho-maria, como a instalação de um centro de convenções na Zona Sul, o reforço da malha aérea e, especialmente, a consolidação de um calendário de eventos
Alfredo Lopes, presidente da Associação de Hotéis do Rio, sobre os Jogos Olímpicos e Paralímpicos, realizados na cidade entre agosto e setembro de 2016
Aconteceu a coisa mais maluca do mundo. Imagine um lugar em que parte das pessoas sofre com violência policial e outros problemas e outra parte tem acesso a vários serviços e privilégios. O natural seria o candidato conservador ganhar na área rica e o revolucionário na pobre. No Rio, foi o contrário. E Freixo e Crivella foram para o segundo turno. Aí, associaram o Freixo aos black blocks. Seu discurso não passou a consistência necessária em um cenário de crise. E houve muita aposta em rede social. Mas ela é só uma carta mais rápida. Se as pessoas não entendem o que está escrito, não funciona. E ninguém leu Freixo sem ser Freixo. O Crivella se afastou da imagem da Universal e se viabilizou como nome para quem buscava respeitabilidade. Em 2014, o Pezão ganhou com uma jogada brilhante, que o distanciou de um governo odiado e criou uma imagem simpática. No fim, as pessoas esqueceram que ele era o Cabral. A lição que tiramos é que a consistência do Pezão em 2014 esteve com o Crivella em 2016.
Lula Vieira, publicitário e marqueteiro das campanhas de Alessandro Molon para a prefeitura em 2016 e de Marcelo Crivella para o governo do estado em 2014, sobre as eleições de 2016
Eu estava em casa no dia em que o Cabral foi preso. Soube da notícia logo cedo pela internet. Fiquei surpresa de tanta gente ir à rua para acompanhar. A primeira coisa que pensei foi na relação profissional que nós tínhamos. Eu o via como um empreendedor. Fiquei triste pelo que aconteceu. Lamento sua prisão. Não vibro com desgraça alheia, seja de quem for. Porém, acho que sua história mostra que os políticos devem tomar mais cuidado. Ninguém achava que o Brasil não funcionava desse jeito, mas as coisas que eram ditas pelos cantos hoje estão na TV. A sociedade também foi conivente. Durante a campanha do Pezão, lembro de eleitores que lhe pediam emprego. Lembro de pessoas que hoje criticam o Cabral buscando soluções ilegais para seus problemas, como se não fosse nada demais. Todo mundo quer o poder. Isso está muito entranhado na gente e precisa mudar. A lição que fica é que a corrupção não é só a do político, até porque eles não vêm de outro planeta. Toda corrupção é corrupção.
Evelyn Rosenzweig, presidente da Associação de Moradores e Amigos do Leblon, bairro onde o ex-governador Sergio Cabral foi preso em casa pela operação Lava Jato em 17/11/2016