"É um quebra-cabeças sinistro esse que não se completa jamais nesses telefonemas noturnos e na minha cabeça perturbada. Nunca sei o que houve. Começo a imaginar histórias, preencher as lacunas, inventar dores. A ordem é informar à imprensa. A imprensa informa a sociedade. A sociedade precisa saber."
O telefone toca, ao longe.
“Que estranho”, penso.
Com meus olhos ainda entreabertos, consigo distinguir um vulto negro, à beira da cama. Desperto no susto. Meu coração dispara.
Tentamos gritar, os dois, sem sucesso. Ele fica lá. Parado, de pé. Olha para os lados, como quem quer se certificar de que estamos, de fato, sozinhos. Pede silêncio e segredo, levando o dedo miúdo até a boca, de um jeito cúmplice. Só então vejo que é um menino.
Ele tem, no máximo, doze anos de idade, e não deveria me assustar. É negro como a noite e o escuro do meu quarto. Seus olhos têm um brilho esquisito. Seu olhar está ausente, como nas fotos antigas, que sempre me perturbaram: é a encarnação de um anjo daguerreotípico, do tempo em que queríamos eternizar crianças mortas com olhos de vidro.
Faço força para entender, mas ainda estou confusa. Não consigo estender os braços o suficiente para que nossas mãos se encontrem e eu finalmente o toque. Esse esforço é exaustivo.
Acordo finalmente. Estou molhada de suor, com uma angústia terrível no peito. É a quarta vez nesse mês que meu telefone toca de madrugada. Olho o número no telefone que grita, insuportável. Estão me ligando novamente da Maré.
Pego caneta e bloquinho. Faço as perguntas de praxe. Àquela hora, não consigo disfarçar o misto de mau humor, confusão e desinteresse. Idade? Sexo? Nome? Como aconteceu? Foi transferido? Morreu?
As histórias nesses momentos são as mais mirabolantes. Nenhuma é minimamente crível. No começo, tinha vontade de perguntar mais, de saber: “Mas como é isso, hein? Como assim estava andando na rua e levou um tiro?”. Mas agora, sei que não posso, ou melhor, que não adianta. Já li sobre os tribunais do tráfico e das milícias e seus métodos. Já vi os vídeos. Imagino que sei como é.
Os fatos relatados nos telefonemas, aparentemente aleatórios, começaram a se parecer. Homens jovens, às vezes crianças e adolescentes, negros. Raramente mulheres. Levados pelas famílias até alguma unidade de saúde próxima. Trazidos não sei por quem, vindos não sei de onde, PAF, PAF, PAF. Perfuração por Arma de Fogo. Transferidos rapidamente para que os procedimentos cirúrgicos sejam feitos em outra parte da cidade. Há os que se negam a receber tratamento ou mesmo ir até um hospital por medo de topar com algo ainda pior e mais temido: a polícia. E existem, é claro, os mortos.
Lembro de perguntar uma vez: “Foi transferido para onde?”, e ouvir a resposta irônica: “Para o céu”.
É um quebra-cabeças sinistro esse que não se completa jamais nesses telefonemas noturnos e na minha cabeça perturbada. Nunca sei o que houve. Começo a imaginar histórias, preencher as lacunas, inventar dores. A ordem é informar à imprensa. A imprensa informa a sociedade. A sociedade precisa saber.
Mas a imprensa raramente procura. Nessa nossa cidade, acredita-se que alguns fazem por merecer certo tipo de morte, de tortura. A sociedade tem outros interesses. O que acontece nas madrugadas ou mesmo nas manhãs quentes, quentíssimas, do Complexo da Maré, simplesmente não se conta. Não há tempo, nem vontade, de saber quem são os jovens que morrem e são baleados e mutilados quase toda semana. E menos tempo ainda para entender o estado atual das coisas. Dizem que os jornalistas não pisam mais nas favelas, que vão lá cada vez menos, que ter um crachá já não é mais garantia de nada. E por que seria?
Com o tempo, comecei também a anotar desinteressadamente os nomes, os pedaços de fim de história que ninguém vai ler, até que começaram a invadir meus sonhos esses fantasmas torturados e a me assombrar com seus ferimentos, sempre duplos: pés, mãos, pernas baleadas.
“Ele tinha onze anos”, me diz a moça. Engulo em seco. Pergunto onde foi o ferimento. “No pé”, ela conta. “Em qual deles?”, quero saber. “Nos dois”. Eu digo: “nos dois?”. Ela repete o que já tinha dito anteriormente. “Sim, nos dois pés, um tiro em cada um deles”.
Ainda são quatro horas, noite fechada. Não consigo mais dormir. Acendo um cigarro. Faço um café que desce amargo. Olho meu filho que dorme tranquilo em sua cama e choro umas lágrimas. Sei que outro dia vai chegar, e que aquele é só mais um telefonema que chega para tocar de leve minhas angústias fajutas de classe média.
Um pensamento me atinge. E se eu adormecer de novo? Será que ele me conta, me diz o que foi que aconteceu? Por que é que levou um tiro em cada pé, menino da Maré?
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