Um dos criadores do Movimento Enraizados, organização cultural de Nova Iguaçu, o rapper Dudu de Morro Agudo fez da música sua ferramenta de transformação, tanto da vida quanto do lugar onde cresceu. Ativista contra o racismo e a favor de investimentos para a juventude da periferia, ele criou a campanha ’Paz na Baixada Fluminense’ e realiza mais uma edição do evento Caleidoscópio neste sábado, 22 de maio.
Quando eu era muito novo, meu pai fazia caleidoscópios para mim. Eram vários vidrinhos, vários cacos, que não tinham importância alguma, mas juntos resultavam em imagens bonitas. Este evento reúne um monte de pessoas, as pessoas da Baixada, que às vezes não têm força nenhuma: mas todos juntos podem criar algo novo, maior e mais bonito. É uma ação de revitalização da Praça de Morro Agudo e que foi pensada também como uma homenagem a um dos meninos aqui do Movimento Enraizados, um dos nossos grafiteiros, o Jean Lima, que foi baleado há cerca de dois meses. Eu me envolvi muito com a questão da segurança pública aqui na região, comecei a participar de várias discussões, seminários e cursos, inclusive o Curso de Segurança Pública na Baixada, realizado pela Casa Fluminensee pelo Fórum Grita Baixada, que aconteceu em Nova Iguaçu mesmo. A partir daí, eu criei a Paz na Baixada Fluminense, que é uma campanha permanente. A proposta é trazer os olhares do poder público para a região e também outros atores sociais e artistas. E me surpreendeu que uma galera da poesia, do circo começou a comprar a ideia do ‘#PazNaBF’ e queria estar junto nessa homenagem ao Jean. E todo dia é gente ligando querendo participar. São 130 artistas. Já não sei onde eu vou colocar tanta gente na programação. E a ideia é todo mundo no mesmo patamar: não tem artista mais famoso do que o outro, não tem arte melhor que a outra. As intervenções vão acontecer durante o dia inteiro. Eu não sabia que daria toda essa repercussão.
Estamos na rua porque perdemos nossa sede há mais ou menos um ano, assim como perdemos os patrocínios. Por isso estamos ocupando mais as ruas. Mas queremos também chamar a atenção para uma infinidade de problemas que temos na região, alguns bem simples de serem resolvidos, a partir do momento em que há vontade política. A praça é um lugar minúsculo, todo depredado. E agora está mudando porque nós começamos uma ação com a prefeitura e eles estão começando a colocar lâmpadas, por exemplo. Nossa arte é um caminho para chamar a atenção do poder público, tanto estadual como municipal.
A gente sente isso na pele, no dia a dia. Quase todos os dias recebemos notícia de alguém que foi assaltado. Durante algum tempo, nós assistimos a vários assassinatos acontecendo no bairro. A região toda está com um sentimento de muita insegurança. A juventude não quer mais ir à rua, não quer mais ir aos os eventos. Está todo mundo com medo. A partir do momento em que as UPPs do Rio foram instaladas, a criminalidade e os bandidos que eram das favelas pacificadas migraram para a Baixada. Bandidos e armamentos. E nós vimos isso aqui, sentimos na pele.
A partir do Juventude Viva, que é um programa do governo federal, soube que Nova Iguaçu é a terceira cidade do Rio de Janeiro onde mais morrem jovens negros de 15 a 29 anos de idade, que é justamente o público com o qual nós trabalhamos aqui no Enraizados. Nós vemos a violência nesta região do Rio, mas eu não imaginava que estava tanto assim. E nem que o próprio governo federal fosse reconhecer isso, sendo que de lá para cá nada foi feito na região para evitar essas mortes. A população daqui é o alvo, mas não tem a noção do que está ocorrendo. Um dos objetivos de contribuir para essas campanhas é popularizar cada vez mais esses dados e trazer para cá políticas públicas. Porque não tem. Só se fala de UPP, de Rio Janeiro; quando chega na Baixada, a coisa fica esquecida. Os planos são para o futuro, quando tem plano. E, quando se em fala em juventude, não tem nada específico. E quem mais morre é a juventude.
Eu sou extremamente contra a redução da maioridade penal. O governo está querendo punir a juventude por causa da sua impotência. O governo deixou a juventude entregue à própria sorte; agora, a solução que eles encontraram é encarcerar todo mundo. Vai reduzir a maioridade penal porque as políticas para a juventude não foram feitas e precisam ainda ser criadas. Não é só criar centros de referência para juventude, é uma série de coisas: educação, cultura, saúde, segurança. É uma série de políticas públicas que não foram feitas.
Por exemplo: em Nova Iguaçu não tem nenhum equipamento público de cultura do estado. E não é só aqui, é na Baixada Fluminense inteira. Não tem nada. Então, a juventude ocupa a rua para fazer movimentos. Olha, uma coisa simples: não tem iluminação. Se não está iluminado é perigoso, precisamos de lugares mais iluminados, não é só colocar polícia. A juventude é potente, a juventude faz e cria. E o que nós tínhamos [no Enraizados], na verdade, era um espaço onde a juventude chegava e criava. A juventude mostrava a sua potencialidade. Hoje em dia não tem esse lugar. O Enraizados acredita na potência da juventude, não a juventude como massa de manobra, como coitado, precisado de assistencialismo. Não. A galera é capaz de fazer, mas precisa de ferramentas.
Só se fala de UPP, de Rio Janeiro; quando chega na Baixada, a coisa fica esquecida - Dudu de Morro Agudo
A cultura hip hop desde sempre se preocupou muito com o território. Transformar o seu local. Eu pratico o rap desde os 14 anos e as letras sempre me disseram isso. O primeiro passo para você começar a ser um rapper, um grafiteiro, é aprender a enxergar a sua área, sua comunidade, com outros olhares. Ver o que é bom ali e o que fazer para melhorar. No Enraizados nós temos a escola de hip hop, ou seja, uma escola não só para aprender a técnica, mas os valores do hip hop. Valores que eu aprendi há 22 anos. E é através dessa escola de hip hop que eles aprendem a ser militantes, aprendem a respeitar o bairro e sua história. Nós fazemos parcerias com outras regiões, e assim eles também a respeitam o local dos nossos companheiros. O Enraizados completou 15 anos em abril deste ano, participamos de campeonato mundial de hip hop, o Take Back The Mic, produzido em Miami, nos EUA, por uma plataforma de música chamada amply.it. Não botávamos muita fé, porque o hip hop estrangeiro é muito bom, mas acabamos ganhando o primeiro lugar nesse campeonato mundial com o coletivo Comboio. Eu nem esperava que desse tanta repercussão. O prefeito da cidade disse que vai dar o terreno da nossa sede, por exemplo, e isso só aconteceu porque ganhamos o festival. Isso dá um animo para toda a galera do Enraizados, mas também para toda a juventude de Nova Iguaçu. Para fazer hip hop não precisa ter recursos caros, nada disso. Qualquer um é capaz de praticar o hip hop. É uma cultura de inclusão, não tem etnia definida, nem gênero. É uma cultura que agrega todo mundo, é só ter vontade.
Morro Agudo tem fases. Quando eu era criança ninguém tinha orgulho de morar no bairro. Todo mundo que ascendia financeiramente ia embora. Fui crescendo e comecei a olhar o bairro com outros olhos. Pensei: “aqui tem muita coisa boa”. Fui pesquisar. Morro Agudo é um reduto de artistas: tem poetas, escritores, atores, cineastas, músicos. E estamos falando apenas de um bairro de Nova Iguaçu. Hoje em dia, faço de tudo para que as pessoas não saiam daqui. Para que elas transformem o nosso lar para que as novas gerações possam ter orgulho. Hoje, a juventude já sabe quem são os artistas da localidade e já sentem um pouco de orgulho de lá. Para mim é isso: o Morro Agudo é um reduto de artistas que não deixam mais a comunidade, mas almejam transformá-la. Ao invés de pessoas irem embora, elas estão ficando e estão produzindo no Morro. A grande transformação vem daí.
Tem uma história que eu sempre conto que é a do elevador. Eu estava num edifício em Copacabana e o porteiro pediu para eu usar o elevador de serviço. Eu falei que não, que ia no social, pois estava visitando um amigo e não estava trabalhando. Eu ia para o quinto andar. No terceiro, o elevador parou para uma senhora entrar. Mas ela não entrou. Se eu não percebesse que era porque tinha um jovem preto dentro do elevador, eu chegaria ao quinto andar e iria embora. Mas eu percebi que era isso. Então eu deixei o elevador subir e descer. E quando parou de novo no terceiro andar, a porta abriu e ela ameaçou que ia entrar e novamente desistiu. Eu desci para o primeiro, entrou um senhor e subimos. Paramos de novo no terceiro e a senhora ficou me olhando. Eu falei: “Hoje, a senhora vai enfrentar os seus fantasmas. Ou vai andar de elevador com um preto, ou vai pela escada, ou vai pelo elevador de serviço, porque eu tenho todo o tempo do mundo. Vou ficar subindo e descendo até a senhora entrar por essa porta.” Nós subimos e o elevador desceu novamente. Quando voltei ela já não estava mais. Acredito que tenha voltado para casa. Também tem outro caso, que foi no médico. Eu cheguei no consultório e sentei do lado de uma senhora. Ela mudou de lugar. Eu fui e sentei do lado dela de novo. E falei: “Muito prazer, sou o médico que vai te atender”. Ela ficou assustada e disse: "É sério isso?” Eu respondi: “Não, mas poderia ser, não poderia? Não sei por que a senhora está correndo tanto de mim.” Ela ficou super sem graça. Por eu ser negro, ela se sentiu em perigo mesmo dentro do consultório médico. Quis que ela pensasse sobre suas atitudes. Se ela não senta num ônibus do lado de um preto, não senta num consultório e o monstro vai crescendo, né? Ela tem de refletir sobre isso. Meu papel na sociedade é esse: fazer as pessoas refletirem, eu sou o chato da parada!
Com certeza. Tenho um amigo de infância, a esposa dele inclusive é negra, que entrou para a polícia. Um dia ele me contou sobre uma operação de revista que fez com outros policiais em três ônibus. Depois, o sargento perguntou se eles eram racistas e eles disseram que não. Mas o sargento falou: “Então, porque sempre o primeiro suspeito que vocês abordavam era negro?” Eles faziam aquilo no automático. Eles não pensavam ou raciocinavam sobre isso. O suspeito para eles era o negro.
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