O Rio costuma reservar às mulheres um lugar muito bem definido: quanto menor a roupa, maior o destaque. Mulher é vitrine, uso e abuso. Especialmente no carnaval. Mas é justamente através do samba que grupos andam botando na rua o bloco contra o sexismo.
“Cidade notável,
Inimitável,
Maior e mais bela que outra qualquer.
Cidade sensível,
Irresistível,
Cidade do amor, cidade mulher.”
Cheia de curvas e de contradições, essa “mulher” chamada Rio de Janeiro, da marcha Cidade Mulher, de Noel Rosa, tem no Carnaval o seu ponto máximo de atração, com a participação de milhares de foliãs e foliões.
Notável, inimitável, sensível, é ainda uma cidade sexista, machista e desigual, reflexo do que se passa no restante da sociedade brasileira. Até mesmo no Carnaval, o Rio costuma reservar às mulheres um lugar muito bem definido: quanto menor a roupa, maior o destaque. Mulher é vitrine, uso e abuso. O desbunde tem limites que esbarram no preconceito.
Mas essa moça anda diferente. Ou, ao menos, tem tentado.
Muitas foram as vozes, no Carnaval deste 2015, que tentaram trazer a discussão do papel da mulher para a folia – e na folia. O engajado bloco Comuna que Pariu cantou o samba “Lugar de mulher é onde ela quiser.” Numa outra versão da mesma história, juntas criamos o bloco Mulheres Rodadas; um protesto feminista bem humorado.
Tudo começou com um post machista no Facebook. Antes de existir de verdade, o bloco foi uma criação virtual. Mais de dez mil pessoas aderiram online. No dia, eram duas mil – principalmente mulheres – ocupando e enfeitando as ruas do Largo do Machado ao Aterro do Flamengo.
O ato foi muito mais que um panelaço entre amigas e amigos. Virou um festival de cinco horas, que acabou numa grande fanfarra na Praia e ocupou páginas nos jornais do mundo inteiro. De cantos escondidos dos Estados Unidos à Bulgária. A construção coletiva – com três bandas tocando de forma gratuita, sem patrocínio –, que tanto impulsiona as ações cariocas, foi a forma que encontramos para botar nosso bloco na rua. Foi dia de celebrar e cantar por uma cidade da mulher. Estávamos juntas para denunciar, na folia, o quão absurda é a ideia de categorizar quem quer que seja por suas decisões sexuais.
O Rio de Janeiro sempre foi a ponta de lança dos costumes brasileiros e a folia permite esse desvio de rota: reconstruir a partir da piada
“Esse bloco é de sapatão?”, perguntou um sujeito meio perdido, que passou ao lado da folia. Sim. O bloco foi das lésbicas, das militantes, das trepadeiras, dos maridos e esposas das mulheres rodadas, d@s seus filh@s e namorad@s, d@s descolad@s, dos doidões, das solteiras, mas, principalmente, delas.
Fridas, taxistas, prostitutas, santas e até uma inacreditável catraca de ônibus. Saias de todas as cores, vestidas por homens e mulheres, bambolês, pernas de pau e muita purpurina deram origem a um momento de apoteose de pura democracia e loucura carnavalesca.
Para nossa alegria, assim como muitos movimentos carnavalescos, o nosso bloco acabou atravessando o carnaval e sobrevivendo para muito além dos quatro dias. Tanto que comemoramos, no dia 8 de março, o Dia Internacional da Minissaia, com um evento que levou grafite e música à Praia de Copacabana. Nossa briga, que reuniu alunas de alguns colégios do Rio de Janeiro, era para garantir que a roupa não fosse uma ameaça, nem uma coação.
Muitos movimentos paralelos têm tomado força neste sentido. Este mês mesmo, foi sancionado projeto de lei do vereador Renato Cinco para o combate permanente ao machismo, assim como para a valorização das mulheres nas escolas públicas do Rio.
Quando um tema se torna bandeira em várias frentes, o impacto passa a ser visível. Dessa união de esforços, vem o sucesso das iniciativas.
O Rio de Janeiro sempre foi a ponta de lança dos costumes brasileiros e a folia permite esse desvio de rota: reconstruir a partir da piada. Promover o encontro das pessoas para rir do seu ridículo, diminuir seus receios e construir uma nova realidade. Que venham mais blocos das mulheres, das trans, dos invisíveis; que os processos durem não só o Carnaval, mas o ano inteiro. E que façamos juntos essa reconstrução do Rio, nossa cidade bela porque unida.
“(...) as desigualdades de gênero somente serão superadas a partir da elaboração de políticas públicas que efetivamente assegurem o direito à cidade, pois as fraturas e lacunas no campo dos direitos humanos e sociais voltados para as mulheres ainda são muito pronunciadas.”
(Relatório “O Progresso das Mulheres no Brasil 2003–2010”, Cepia – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação e ONU Mulheres)
Como um bloco como o Escravos da Mauá contribui para fortalecer a identidade do seu bairro — no caso, a zona portuária? Neste artigo, Teresa Guilhon — uma das fundadoras do cortejo — explica
Uma nova investigação sobre como as bibliotecas do Centro tratam quem as procura como local de trabalho ou estudo.
O lixão de Duque de Caxias foi fechado, mas o lixo está por toda parte, integrando-se ao cotidiano das crianças