Estrutura construída no Canal de São Francisco, em Santa Cruz, põe pescadores e industriais em lados opostos. Segundo trabalhadores, barragem dificulta navegação e inviabiliza pesca na região da Baía de Sepetiba.
(Foto: Laís Jannuzzi/Vozerio)
Uma barragem no canal de São Francisco, em Santa Cruz, está no centro de um impasse envolvendo pescadores e indústrias na Zona Oeste do Rio. De acordo com os trabalhadores, a construção feita há um ano dificultou a navegação e inviabilizou a pesca, além de ter aumentado a ocorrência de enchentes na área. Na última quinta (10/3), o Ministério Público (MPRJ) realizou uma vistoria no local para analisar o impacto socioambiental da obra.
"Pelos relatos que temos aqui, a avaliação dos efeitos gerados pela barragem pode ter sido subdimensionada", afirmou o promotor Alexandre Mota. A estrutura foi construída pela Aedin (Associação das Empresas do Distrito Industrial de Santa Cruz e Adjacências) para reduzir o volume de água salgada que entra no canal de São Francisco. O canal de cinco quilômetros liga o rio Guandu à Baía de Sepetiba e é usado pelas indústrias como fonte de água para refrigeração do maquinário.
De acordo com as empresas, a redução na vazão do Rio Guandu nos últimos dois anos gerou no canal o aumento do volume de água salgada, que não pode ser usada nas fábricas porque danifica as máquinas. A situação justificou a necessidade de uma soleira submersa no local, que teve a construção autorizada pelo Inea (Instituto Nacional do Ambiente) em abril de 2015 em caráter emergencial. Este é justamente um dos pontos questionados pelo MP. "Queremos entender se as análises de impacto do Inea foram feitas da forma correta e se seus resultados justificam a autorização que foi dada", afirma Alexandre.
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A Aedin garante que realizou estudos para ter certeza que a obra não provocaria danos à população da região. Mas, quase um ano depois, as estacas de metal que ocupam o canal de ponta a ponta viraram uma dor de cabeça para os pescadores. "Eles disseram que fariam uma soleira submersa e construíram uma barragem", afirma Elias de Deus, que pesca há 30 anos no canal. Em entrevista por e-mail, a Aedin não esclareceu por que a chamada "soleira submersa" fica visível do lado de fora do rio.
"O mais delicado nessa situação toda é que os pescadores estão sem poder trabalhar e gerar renda para suas famílias", diz Gabriel Strautman, coordenador do Instituto Pacs (Políticas Alternativas para o Cone Sul), que há 10 anos acompanha situação na região. "A barragem está tirando nosso direito de ir e vir", resume Elias.
O caso da barragem no canal de São Francisco é cheio de contradições. Embora afirme ter medido o impacto que a "soleira" causaria no local, a Aedin afirmou que só durante as obras percebeu que a velocidade da correnteza no canal aumentava na maré baixa. Isso impediria a passagem de barcos menores pela barragem e levou a entidade a disponibilizar 24 horas por dia um guindaste para atravessar os veículos. Segundo os moradores, vários pescadores já perderam suas embarcações devido à força das águas.
Assista ao vídeo em que pescadores tentam passar com seus barcos pela barragem, com dificuldades:
Outro indício de que os impactos da construção na região podem ser maiores do que os estimados pela Aedin é um estudo do Instituto Marés, que aponta que a obra atrapalha a reprodução dos peixes e representa risco para a vida marinha na região. Os pescadores da área concordam com o levantamento e estão preocupados com a situação. "Cerca de 600 pessoas aqui na região dependem diretamente da pesca para sobreviver", afirma Strautman.
No último dia 16 de janeiro, um temporal na região alagou casas e destruiu embarcações. Um trecho da barragem foi levado pela enxurrada, que está sendo reconstruído. Segundo a Aedin, os estragos foram causados pela força acima da média do temporal e pela abertura pela Cedae das comportas na Estação de Tratamento de Água do Guandu, que jogam água no canal de São Francisco. Mas, para os pescadores, a enchente foi causada pela barragem.
"Antes da ’soleira’, a Cedae abria as comportas e isso não acontecia", afirma Edson Silva, que sempre morou na região e pesca ali há 22 anos. Em entrevista por email, a Aedin não mencionou a intenção de oferecer qualquer tipo de ressarcimento pelos danos causados pelo temporal. Em fevereiro deste ano, a Defensoria Pública entrou com uma liminar na justiça pedindo a retirada da barragem ou o pagamento de dois salários-mínimos aos pescadores enquanto a estrutura estivesse sendo usada. O juiz responsável decidiu esperar por um posicionamento da Aedin e o caso está parado.
"Esse é um dos conflito socioambientais mais sensíveis do estado hoje", afirma o deputado Flávio Serafini, que informou a situação ao MPRJ em setembro do ano passado e participou da vistoria de ontem. O episódio é um dos reflexos da ocupação da Baía de Sepetiba por mais de 400 indústrias, portos e siderúrgicas e se soma ao leque de casos semelhantes que opõe a sobrevivência de ocupações tradicionais — como a pesca — aos ganhos econômicos de grandes empreendimentos. "Eles quebraram a coisa da natureza", afirma sobre as transformações Oseias Marinho, de 84 anos, 75 deles vividos na região.
"O canal mudou muito depois que a indústria chegou", avalia Elias. Ele afirma que antes conseguia pescar até meia tonelada por dia no mesmo local de onde hoje não consegue tirar mais que 20 quilos. "Estou tendo que trabalhar na construção civil para garantir meu sustento", diz ele. Lindalva Maria dos Santos, integrante do grupo de mais de 100 pescadores que vive na margem do Canal de São Francisco, concorda: "Não pescamos mais o que pescávamos antes".
Na próxima segunda (14), trabalhadores e Aedin marcaram mais uma reunião para tentar resolver a situação.
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