"Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. [...]. É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência."
É possível flanar pelo Rio hoje? Num momento em que a circulação pela cidade é tema cada vez mais questionado por seus próprios cidadãos, as palavras do escritor João do Rio (1881-1921) no clássico A alma encantadora das ruas (1910) parecem ressoar com mais força. Afinal, o pseudônimo definitivo do escritor João Paulo Barreto tem vida própria e é considerado hoje um dos mais importantes cronistas cariocas, autor de narrativas memoráveis das transformações urbanísticas e sociais vividas pelo Rio na belle époque, sob o governo do então prefeito Pereira Passos. Os paralelos possíveis entre os começos do século XX e XXI são muitos, e é sobre eles que conversamos com a socióloga Maria Alice Rezende, professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Nesta quinta-feira (24), às 17h, ela falará na Biblioteca Nacional justamente sobre João do Rio, o dândi, o flâneur, o escritor, o jornalista e o observador. A palestra é parte do Ciclo de Conferências sobre os Construtores da Literatura Carioca, realizado pela BN e pela Academia Carioca de Letras até o final de janeiro de 2016.
Talvez seja possível construir aproximações entre esses dois momentos, sobretudo pelo tipo de intervenção urbanística que estamos assistindo. Mas penso que, mais importante do que as transformações materiais e subjetivas que estavam em curso à época em que João do Rio viveu, foi o “olhar”, a perspectiva que passou a presidir as narrativas sobre a cidade. Aquele foi um tempo em que os jornais se transformaram, com a profissionalização de redatores, repórteres, cronistas, chargistas — ou seja, com o aparecimento de um novo modo de observar e traduzir a cena urbana. Os relatórios de polícia, os relatos de viajantes, as cartas e, sobretudo, a literatura romântica — os modos convencionais de “dizer” a cidade — passaram a conviver com uma linguagem mais atenta ao efêmero, ao instante, ao escândalo, a tudo aquilo que poderia atrair os leitores de um jornal “pago”. É esse novo regime discursivo o que distingue o contexto em que João do Rio viveu e escreveu do momento atual e de outros períodos.
Pode-se dizer que ele construiu uma dentre as muitas “almas cariocas” que habitam o imaginário da nação. Porque, afinal, o dandy dos salões da belle époque — figura comumente associada a João do Rio — é tão reconhecidamente carioca quanto o praiano menino do Rio, de que falou Caetano Veloso. Há, portanto, camadas de significação atribuídas à alma do Rio de Janeiro, construídas em contextos diversos, que mantêm, inclusive, uma “conversa” entre si.
No caso de João do Rio, a ideia enfatizada é a de uma sociabilidade que provém do espaço público, da rua, da relação que se estabelece entre a vida subjetiva dos citadinos e a materialidade urbana a que estão expostos. Não mais o predomínio da sociabilidade dos sobrados; não ainda o espaço público representado pela praia: simplesmente a rua.
Flanar, para João do Rio, é percorrer as ruas com inteligência. O flâneur é um observador atento e analítico. Ele vê coisas que os outros não veem, ele reflete, deduz, traça o perfil físico e moral das ruas. O flâneur, portanto, não é um personagem datado e, sim, uma operação cognitiva, que recorta, da variedade dos fatos urbanos presenciados, aquilo que será estilizado e apresentado como uma tradução da cidade. Assim, turistas ou estrangeiros em uma determinada cidade podem experimentar a flanêrie, tal como ocorre com jovens “imaginosos” de todas as idades.
Receio que hoje, em 2015, João do Rio encontrasse sociedades excessivamente comandadas pelo dinheiro, que condenam os transeuntes à pressa, à padronização de comportamentos e gostos, à vulgaridade dos modos, à ação automática e irrefletida — tudo o que seu heterônimo, Godofredo Alencar, previu e temeu.
Acho que o seu espanto estaria associado à percepção de que muitas das tendências que ele construiu analiticamente seriam, hoje, facilmente verificáveis. A tendência à homogeneização das grandes cidades, por exemplo, como efeito de um cosmopolitismo patrocinado por interesses transnacionais é uma dessas predições. Outra impressionante análise é a que encontramos em uma de suas crônicas publicadas na coluna "Cinematógrafo", na qual João do Rio aponta a tensão entre modernidade e decadência como fundamento da violência e da criminalidade nas grandes cidades — dramatizadas, ambas, pelo fato de serem praticadas, cada vez mais, por crianças. O lado aristocrático de João do Rio, exercitado em seu dandismo, seria impactado, sem dúvida, por esse mundo degradado que alimentava a sua experiência literária e jornalística.
Um dos grandes estudiosos de João do Rio, Renato Cordeiro Ramos, lembra, com razão, que na década de 1970, João do Rio se encontrava quase esquecido, em meio a uma cidade que sofria as agruras da ditadura militar. Foi no começo da década de 1980, quando começaram a soprar os ares da liberalização política, que Carlos Drummond de Andrade, em crônica publicada no Jornal do Brasil, começou a restaurar a presença de João do Rio em nossa imaginação literária, sociológica e mesmo urbanística. Creio que João do Rio é um dos nossos ancestrais mais poderosos, no que se refere ao tratamento intelectual da cidade do Rio de Janeiro, em diferentes perspectivas disciplinares. Por outro lado, para o senso comum, a ideia de uma cidade que se encontra na rua, que ama as esquinas, que sempre acorre ao espaço público é algo que tem em João do Rio um formulador importante, embora não seja o único.
São contextos efetivamente muito distintos, nos quais a crítica social e a prática intelectual da denúncia ocupam lugares bastante diferentes. Na belle époque, a denúncia das mazelas acarretadas pelo dinheiro, pela modernidade — a crítica, enfim, à decadência — era uma dicção autoral, um tópico do projeto literário de alguns autores, que não tinham muitos concorrentes na disputa pela autoria desse diagnóstico da degradação. Pode-se dizer que a literatura e o jornalismo organizavam esse território discursivo. Hoje, como se sabe, ele se encontra muito mais povoado por diferentes saberes, vozes, atores, o que torna mais difícil a consagração de um autor específico.
Era mais diverso — no sentido de ser social e culturalmente mais heterogêneo —, porém, menos “público”, se levarmos em conta a centralidade dos sobrados naquele contexto e a demofobia característica das elites recém tornadas republicanas.
A corrida da cidade para a região Oeste é fruto de um equívoco político e urbanístico que recua aos anos de 1940/50. O Rio de Janeiro, que nascera no entorno da Baía de Guanabara, que assim se tornara conhecido nacional e internacionalmente, e cuja iconografia histórica consagrara a imagem de uma disputa épica entre o mar e as montanhas, foi levado a desbravar os baixios da Zona Oeste, onde tudo deveria ser erguido a partir do “zero”. Não foi, portanto, um crescimento natural, orgânico, da cidade; e, quando essa naturalidade não se impõe, as fraturas entre as duas dinâmicas — a da velha urbe e a da nova frente de expansão — levam certo tempo, e muito dinheiro, para a sua correção. A Barra da Tijuca, desde então, ensaia a prescrição de um estilo de vida alternativo. Mas, como a sociabilidade das esquinas e a crítica ao rodoviarismo voltaram a ser mobilizados na ideação do “etos carioca”, a força centrípeta dessa nova configuração tem atuado no sentido de tornar a zona portuária o eixo privilegiado de revitalização da cidade. Estamos de volta, pois, ao ambiente literário de Paulo Barreto, o João do Rio.
Advogado analisa aplicativo do ponto de vista do direito econômico
Diretor de A Batalha do Passinho, Emílio Domingos fala sobre Deixa na Régua, seu novo filme que aborda universo das barbearias cariocas
Para Clarisse Linke, diretora do ITDP Brasil, transporte de alto custo e má qualidade é um fator de exclusão dos jovens nas cidades brasileiras