Em outubro deste ano, a detenta Barbara Oliveira de Souza deu à luz sozinha em uma cela da penitenciária Talavera Bruce, no Complexo Penitenciário de Bangu. Amplamente divulgado na mídia, o caso levou ao afastamento da diretoria do presídio. Se engana, contudo, quem pensa que o caso de Barbara foi isolado e está resolvido: ele é sintoma de um triste quadro vivido pelas mulheres gestantes ou com filhos pequenos encarceradas no Rio de Janeiro. Elas são em sua maioria negras ou pardas, jovens, solteiras, com baixa escolaridade, rés primárias e presas provisórias — sem deixar de ser grávidas ou mães recentes. Os dados são da pesquisa divulgada nesta terça-feira (24/11) realizada pelo Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ (Ladih), que entrevistou 42 mulheres de duas unidades prisionais femininas do Complexo de Gericinó, em Bangu: o presídio Talavera Bruce — onde está boa parte das gestantes — e a Unidade Materno Infantil — onde ficam, por cerca de seis meses, as puérperas com seus filhos. Conversamos com a pesquisadora Luciana Boiteux, professora da UFRJ e uma das coordenadoras do estudo, sobre os resultados e sobre o relatório do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias voltado para as mulheres presas no Brasil e no Rio.
O relatório final da pesquisa já está sendo finalizado e será disponibilizado em breve no site do Ladih.
-# De 2007 a 2014, segundo o relatório do Infopen sobre encarceramento feminino no Brasil, o número de mulheres presas no Rio aumentou 271%, sobretudo de 2013 (1.618) para 2014 (4.139). A que você atribui esse salto tão impressionante? Há um problema nas estatísticas disponibilizadas pelo governo federal. A meu ver, esse aumento de mulheres encarceradas no Rio significa, na verdade, uma subnotificação no ano anterior — ou seja, em 2013 havia mais mulheres presas do que o número apresentado pelo governo. Foi um aumento muito grande, eu não consigo explicar de outra maneira. Embora eles tenham se esforçado — é a primeira vez que se publica o “Infopen Mulheres” —, não podemos fazer uma leitura desses dados sem outra visão da realidade.
Sim. Inclusive, se você analisar com cuidado, o dado que mostra que 58% das mulheres presas no Brasil são acusadas de crime relacionados a tráficos de drogas, mas não há dados para o Rio de Janeiro, São Paulo, Tocantins, Sergipe e Maranhão. Isso porque, embora esses dados sejam coletados em nível nacional, quem tem a responsabilidade de produzi-los são os estados. São Paulo não informou esse dado, mas lançou em junho deste ano um relatório exclusivo do estado. O que estou fazendo agora – e isso vai entrar no relatório final da pesquisa – é uma avaliação desses dados considerando São Paulo. No Rio, nós até pedimos algumas informações e conseguimos um dado geral das mulheres presas, mas não conseguimos acesso ao detalhamento. Por isso, uma das recomendações que a gente vai fazer é a melhoria da disponibilidade desses dados. Qualquer pesquisador e gestor precisam deles para a elaboração de politicas públicas. No Brasil, não temos essa cultura de politica pública baseada em informação, e é exatamente isso que precisamos instituir.
Se observarmos todas as pesquisas já feitas sobre esse assunto, verificamos que não encontramos uma coisa muito diferente. Mas o fato de 70,9% das grávidas responderem por crimes relacionados ao tráfico me chamou a atenção. E aí eu me pergunto por que elas estão ali, o que estão fazendo ali. Qual o sentido dessa política tão irracional que legitima colocar uma grávida dentro de uma penitenciária como presa provisória? Os dados das presas provisórias também me chamaram muita atenção [70,2% das entrevistadas eram presas provisórias, número muito maior perto dos 30% em todo o país apresentados no relatório Infopen Mulheres]. Não esgotamos todos os presídios nem todas as grávidas, sobretudo porque a porta de entrada do sistema penitenciário é a cadeia pública Joaquim Ferreira, onde deve haver outras grávidas. Mas esse índice tão alto é um reflexo do sistema judiciário, onde há uma cultura da prisão provisória — é quase como um vício. E, mesmo para crimes de tráfico, haveria a possibilidade de determinar penas alternativas no final do processo. Quando olhamos para as mulheres grávidas, não há uma racionalidade humanitária.
Veja bem, é uma decisão do juiz, e aí se abre a questão da discricionariedade. Eu diria que é ilegal sim, porque o juiz precisa fundamentar [a decisão]. Inclusive, uma das recomendações que vamos fazer no relatório final da pesquisa é a revisão da situação de todas as grávidas. Não é possível deixá-las na mão de um juiz, que vai manter uma situação como essa.
Não, acho que não tem a ver com esse fato. É uma cultura realmente autoritária. Em termos de primeira instância, temos até muita juízas – não sei especificamente na área criminal —, mas acho que as mulheres nas faculdades de direito já são maioria. Ainda assim, no caso da Barbara, por exemplo, o juiz era mulher. À época em que foi presa, ela estava com suspeita de gravidez. A Defensoria informou que ela estava sentindo enjoos e tinha problemas de dependência. Mas o que aconteceu foi: presa provisória por tráfico de crack, ela chega já possivelmente grávida e narra que precisa de medicamentos, pois tem processo de sofrimento mental. A juíza manda instaurar um incidente de insanidade. E o Judiciário deu a resposta de mantê-la presa. É algo muito, por assim dizer, angustiante mesmo: imaginar que alguém não tem essa sensibilidade. É uma cultura autoritária, uma ideologia de aplicação da prisão como medida de segurança. E, sobretudo quando olhamos para essas juízas mulheres, há também uma tendência de ser cobrado delas uma postura masculina, por estarem ocupando um espaço masculino. Por isso, as juízas tendem a ser até mais duras nas sentenças, com receio de serem consideradas inseguras, sem mão pesada o suficiente para exercer aquele papel – de juiz vingador, punitivo —, que as mulheres incorporam para serem aceitas, muitas vezes até para garantir sua promoção dentro da carreira.
Para mim, o ideal seria não encarcerar essas mulheres de maneira nenhuma. Nós trabalhamos com a perspectiva de que a gravidez na prisão é sempre uma gravidez de risco, e deve ser impedida a qualquer custo. Eu acho que é preciso descriminalizar, legalizar [as drogas]. Não estamos aqui propondo maquiagem e melhorias – “vamos pintar o presídio de rosa, vamos ter presídios especializados em mulheres” —, que é o que a gente vê em algumas análises. Eu quero tirar as mulheres da prisão, seja por uma legalização, seja por medidas de prevenção social mesmo, de apoio, assistência etc. Nós mapeamos que um dos principais motivos que leva essas mulheres a cometer crimes é a necessidade financeira. Um dado especialmente relevante é que elas são responsáveis pelo sustento da família, seja individualmente [19%], seja com o companheiro [22%]. Se somarmos a esse dado o fato de que a maior parte delas tem o companheiro preso, imagine o impacto social e econômico que isso não provoca nessas famílias. É uma mulher com filhos, baixa escolaridade, jovem: um caldeirão de vulnerabilidades. Foi também por isso que escolhemos essa questão da mãe, justamente para contrapor esse discurso punitivo que vemos na política de drogas. O machismo, o estigma que recai sobre essas mulheres recai também para fortalecer um discurso opressor – ainda que seja por parte de uma mulher. Na hora de criminalizar o aborto, você dá ao feto quase um CPF; na hora de encarcerar essa expectativa de vida junto com a mãe, [parece que] não há a menor possibilidade de se pensar de maneira diferente.
Olha, eu vou dizer que está havendo certa euforia com as audiências de custódia. Minha avaliação é a seguinte: de fato há algum tipo de aumento na concessão das liberdades provisórias. Mas não é uma panaceia, especialmente em relação à questão do tráfico. Acho que [as audiências de custódia] devem existir, eu defendo. Mas, se o Judiciário mantiver a mesma lógica sem fazer uma autocrítica ou uma reflexão, o que vamos ter é uma perpetuação, um reforço da situação atual. No caso da Barbara, houve um contato pessoal com a juíza, e a juíza manteve [a prisão preventiva]. Qual foi o motivo? “Garantia da ordem pública”. Um fundamento abstrato, que trabalha a ideia de estigma, de bode expiatório.
Não é um caso que eu tenha estudado a fundo, mas o panorama que fui verificar no processo dessa mulher é se ela se encaixava no perfil que nós havíamos identificado. Negra, com uma demanda de saúde [Barbara toma remédios psiquiátricos]. As queixas dela me chamaram atenção, pois são semelhantes às que verificamos na pesquisa. Por exemplo, muitas contaram se dirigir aos agentes penitenciários para solicitar ajuda e não serem atendidas. Além disso, o caso de Barbara não foi o único caso relatado de partos dentro de presídios. Recebemos informações de que houve outros. E também de presas que tiveram seus filhos no transporte, pois não houve tempo de chegar ao hospital. Depois que a mulher tem o filho, a sensação que temos é que o atendimento melhora um pouco. Mas a situação da grávida é muito ruim: elas narram xingamentos, demandas que são objetos de deboche etc.
A perspectiva que eu trabalho é que o sistema penal já é seletivo. Não tem como pegar os registros e identificá-los com uma criminalidade real. Esses registros penitenciários já são fruto de um filtro que depende da própria atuação formal do sistema. O que posso dizer sobre esses dados é que se está encarcerando mais pessoas por drogas, sobretudo mulheres. Como se explica isso? Do ponto de vista estrutural, não buscamos causas individuais. Avaliamos que a polícia e o sistema penal focam nos mais fracos. Não há grandes lideranças presas, nem homens nem mulheres, salvo raríssimas exceções. O foco é a pulverização de prisões de criminosos pequenos, que são facilmente substituíveis. O que eu analiso é que há cada vez mais uma questão econômica ligada ao tráfico. Ou seja, entre os pobres as mulheres são maioria, e o mesmo vale entre os pobres responsáveis pelo sustento da família. Isso explica o aumento desse encarceramento de mulheres. Elas cada mais são sobrecarregadas por serem solteiras, separadas, terem responsabilidades, e o tráfico é uma fonte de recursos. Nesse ponto, a situação da América Latina é impressionante. Temos que pensar alternativas. O Equador, em 2009, determinou um indulto geral para todos os presos que atuaram como "mulas", sem recorte de gênero. A Bolívia determinou recentemente um indulto para mulheres grávidas. A Costa Rica, que tem um dos maiores percentuais per capita de encarceramento de mulheres, aprovou a primeira lei penal de que se tem noticia com recorte de gênero, que reduziu a pena de mulheres acusadas de ingressar com drogas em presídios. Esses são exemplos que podem ser seguidos, políticas e leis específicas para mulheres, reconhecendo a situação de vulnerabilidade e opressão a que elas estão mais fortemente submetidas do que os homens.
Essa questão da visita é um marco desde a década de 1980, na pesquisa da [socióloga] Julita [Lemgruber]. É muito triste verificar isso. As mulheres são extremamente sozinhas. É a questão do estigma: uma sociedade patriarcal espera uma docilidade das mulheres, de tranquilidade, submissão; então vêm essas mulheres, que já tem o estigma de criminosas. E, no caso de tráfico — o crime com maior visão negativa —, isso se reforça ainda mais. O cuidado com a família e com o companheiro é considerado característica da mulher. Na sociedade hoje, o cuidar dos homens está sendo atualizado no sentido negativo: antes, havia o aspecto de cuidar no sentido econômico, hoje nós mulheres não temos nem queremos mais isso. Mas, ao mesmo tempo, os homens ainda não desenvolveram aquele cuidar do afeto, do apoio, e, no caso das presas, é esse o reflexo que se apresenta. Um abandono, decorrente do estigma.
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