Em 2013, os protestos que ocuparam as ruas de diversas cidades brasileiras tinham uma motivação clara: o aumento das tarifas para transportes públicos. Em sua maioria jovens, os manifestantes das grandes metrópoles reivindicavam direito à mobilidade urbana, à cidade e a transporte público de qualidade.
Não surpreende que tenha sido a mobilidade a deflagrar essa série de protestos, que ficou conhecida como “Jornadas de Junho”: as tarifas de ônibus do Rio de Janeiro e de São Paulo, por exemplo, estão entre as mais caras do mundo, segundo um estudo da Fundação Getúlio Vargas publicado em 2015. E quem mais sofre esse impacto? Os moradores das periferias, que precisam enfrentar horas e horas de trânsito em modais de transporte de má qualidade.
Antes de se pensar políticas de mobilidade específicas para determinados grupos da população, contudo, é preciso obter mais dados. Essa é a avaliação de Clarisse Linke, diretora executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil). Nesta entrevista, Clarisse aponta também a importância de se mapear os desejos dos cidadãos em relação à circulação na cidade — ou seja, saber não só como de fato circulam, mas como gostariam de circular.
Quando não tem carro, esse jovem da periferia depende do transporte publico — e o nosso é de baixíssima qualidade. Até tem havido uma expansão do sistema de transporte em cidades como o Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, mas a qualidade ainda está muito aquém do que deveria. Como a maior parte das oportunidades da cidade está concentrada num único centro, esse jovem está distante da cidade tanto física quanto simbolicamente — pela qualidade do deslocamento, pelo preço e pelo tempo gastos.
Esse jovem tem menos acesso ao que a cidade tem a oferecer. A gente vive na cidade porque é onde temos um ganho de escala nas interações, na troca de experiências etc. — um aumento de repertório de modo geral. Um jovem excluído da cidade, com acesso limitado a ela, também está excluído de tudo que a cidade pode lhe dar.
Sim, alguns jovens migram para o carro, quando podem. Mas há um movimento contra intuitivo interessante aí. Li um artigo recentemente que dizia que os jovens estão tirando menos carteira de motorista e comprando menos carros. É uma tendência não só no Brasil, mas no mundo todo. Claro que a mídia está relacionando isso à crise econômica, mas a gente vê que, na verdade, é provável que a causa não seja apenas essa. A emissão de novas habilitações caiu 53% entre 2013 e 2015; e, nos Estados Unidos, os números atuais estão no mesmo nível de 1960. Essa queda é mais drástica entre jovens de 22 a 30 anos. Esse jovem que pode, mas não quer mais investir no carro, provavelmente está utilizando transporte público. E também tem crescido o movimento cultural na periferia: diversos grupos, coletivos e atividades têm surgido, o que talvez seja de certa forma também uma resposta: jovens encontrando soluções locais para circulação, contato, interação, troca etc., demandando menos idas ao Centro e à Zona Sul. De qualquer maneira, toda esta é uma análise impressionista, pois não há dados.
Não temos dados com recortes de faixa etária e gênero. Esse tipo de dado só é coletado quando a pesquisa é voltada para consumo, e não para políticas públicas. De um modo geral, do ponto de vista do transporte na cidade, temos muitos poucos dados por gênero e por idade. É uma falha seríssima de indicadores, uma lacuna que todos nós deveríamos buscar para entender melhor: o padrão de deslocamento por idade e por gênero cruzado com o uso da cidade como um todo (equipamentos urbanos, lazer etc.).
Do ponto de vista de transporte e qualidade de vida na cidade, eu costumo dizer o seguinte: se a cidade considera como prioritários os grupos de mobilidade reduzida, os grupos mais vulneráveis da cidade (como crianças, grávidas, idosos), vai estar preparada para qualquer um. O preparo da cidade e a qualidade do transporte precisa focar nesses grupos.
O jovem tem um deslocamento específico. Precisamos entender as programações noturnas, os coletivos em diversos bairros, em diversos munícipios e garantir serviços específicos, com horários específicos, nesses locais. Durante a semana, nos serviços mais comuns, o jovem está atendido se o restante da população estiver (exceto pela questão da tarifa), mas nossa compreensão dos deslocamentos nos finais de semana e nas noites poderia ser melhor: que circulação é esta, entre quais municípios? Seria interessante entender isso, mas sem indicadores por idade não temos como saber quais políticas públicas deveriam ser implementadas.
A política de mobilidade teoricamente tem que estar integrada com todas as outras políticas. Não só com o Plano Diretor de Transporte Urbano (PDTU), transporte de carga ou outras questões relacionadas, mas com qualquer outra política da cidade: habitação, cultura, educação. A mobilidade é um dos eixos estruturantes da cidade e da forma como a população usa, ocupa e circula no território. Mas, na prática, isso nunca acontece: são pouquíssimas as integrações, pouquíssimos os diálogos entre os setores. De qualquer maneira, a questão não é apenas representantes de outra secretarias participarem das discussões sobre mobilidade, mas a mobilidade estar presente nas outras secretarias. Nós temos muitos processos de planejamento que ocorrem de forma isolada. De vez em quando, um grupo de trabalho se reúne para discutir políticas intersetoriais, mas não são essas pessoas que tomam as decisões — é mais uma discussão pro forma. É fundamental um planejamento mais integrado de todas essas políticas. Não sei exatamente como isso deveria ser feito, porque o olhar do planejamento setorial é muito enraizado: normalmente, se faz planejamento olhando para setores específicos e no máximo trazendo inputs acessórios de outros setores. Mas o fato é que, sem isso, não temos como entender as linhas de desejo das pessoas em relação à mobilidade.
É saber o desejo que essa pessoa tem de circulação na cidade. O mais comum é tentar entender como o cidadão circula — para onde vai, onde estão as origens, os destinos e pronto. A falha é que, dessa maneira, não olhamos para o desejo: qual a circulação de fato desejada? Quando o ITDP Brasil realizou o Ciclo Rotas Centro aqui no Rio, fizemos uma atividade na qual as pessoas mapearam como andavam de bicicleta no Centro, e outra em que diziam como gostariam de circular. A ideia era saber coisas como: a rua onde você pedala é a melhor opção? Por que você pedala por ali? Se você tivesse oportunidade de decidir, qual caminho faria? Entender esse desejo de circulação é fundamental e precisa estar presente em todas as outras discussões.
Acho que sim, é preciso coletar dados qualitativos a partir de conversas, grupos focais, caminhar na cidade mapeando seus desejos, sua percepção. Claro que são pesquisas feitas provavelmente numa escala muito menor, mas que podem, com muita qualidade, complementar pesquisas quantitativas. O problema é que os grandes projetos de planejamento investem em dados quantitativos — e esse investimento é necessário, pois precisamos de números —, mas prestam pouca atenção a essa parte mais subjetiva da discussão. É como se o subjetivo não tivesse espaço no processo de planejamento por ser muito questionável e não mensurável. Mas são informações fundamentais para o planejamento do transporte urbano. Para realizar essas pesquisas, contudo, é preciso ter tempo e dinheiro, e os nossos processos de planejamento não costumam respeitar o tempo.
Sim, sem dúvida. Esse tipo de exercício traz um benefício para a própria pessoa: identificar e até mapear a maneira como você se relaciona com a cidade, como você pode contribuir para melhorá-la etc. Eu, por exemplo, moro no Flamengo e trabalho no Centro. Às vezes, como a distância é curta, venho andando para o trabalho justamente por isso: para observar a minha circulação pelas ruas. Uma vez fiz uma atividade parecida também com meus filhos na ida para a escola. Há três caminhos que podemos fazer. Eu normalmente faço o caminho que acho mais fácil e conveniente. Um dia, perguntei qual caminho eles queriam fazer. Fomos andando e eles foram dizendo do que gostam e do que não gostam. Depois, tracei o caminho num mapa e analisamos as três opções que tínhamos. O caminho mais longo é o que eles preferem fazer, porque tem mais pontos lúdicos de interação: uma praça, um desenho numa galeria etc. Ao passo que a minha escolha de caminho é mais pragmática: não é o caminho mais curto, mas evita alguns cruzamentos, leva em conta a qualidade da calçada etc. Para mim, foi muito importante ter feito essa atividade com meus filhos, pois me ajudou a entender o olhar deles e os meus próprios critérios de circulação. Claro que essas atividades contribuem para processos de planejamento mais amplos, mas também são benéficas para nós cidadãos.
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