Depoimentos de pessoas em situação de rua marcaram a noite de debate no ‘Conversas na Biblioteca’, que abordou o público heterogêneo que faz da rua seu lar. O subsecretário Municipal de Proteção Social Especial elencou mudanças para um novo sistema.
O tema do debate eram os moradores de rua e a relação que com eles tem a cidade, sua população e instituições. Um grupo destes habitantes do Rio de Janeiro não se conformou em ser apenas assunto e ocupou as cadeiras do auditório da Biblioteca Parque Estadual (BPE) para dialogar diretamente com os palestrantes. Após as apresentações da jornalista Yzadora Monteiro, uma das criadoras da página Rio Invisível, e do subsecretário municipal de Proteção Social Especial, Rodrigo Abel, eles fizeram perguntas, deram depoimentos sobre dificuldades cotidianas e cobraram ações de apoio ao representante da Prefeitura.
Realizado pelo Vozerio, na última terça-feira, dia 16, o evento foi o segundo da série Conversas na Biblioteca e se iniciou com a participação de Yzadora Monteiro. Criada no Facebook em setembro de 2014, por Yzadora e pelo publicitário Nelson Pinho, a página Rio Invísivel já tem mais 80 mil seguidores e entrevistou e fotografou mais de 60 moradores de rua. A dupla se inspirou em página semelhante de São Paulo para desconstruir barreiras sociais. “Descobri que a barreira era eu mesma”, disse Yzadora.
“Hoje, a população de rua no Rio de Janeiro são números. Com a página, eles são mais que números. Lá temos o Paulo, a Dirá e a Deusa, que tem sonhos, futuro e passado. O objetivo da página é conhecer quem tem a rua não como lugar de passagem, como muitos de nós, mas como ponto de partida e destino. E conhecer um problema social por quem o vive.”
Responsável pelo desenho de políticas para apoiar os que vivem nas ruas e em abrigos, o subsecretário municipal de Proteção Social Especial, Rodrigo Abel, precisa trabalhar com os números. Abel reconheceu que, historicamente, o Rio não é um exemplo para políticas públicas voltadas a essas parcelas da população.
“O país não tem uma política pública para população em situação de rua e a cidade do Rio de Janeiro sempre teve histórico de combate a quem usufrui da rua para processos sociais, afetivos e econômicos. Desde a época de Pereira Passos, da época de repressão aos moradores de rua, aos camelôs e ao comércio ilegal”, lembrou Rodrigo Abel. O secretário afirmou que a atual gestão da Secretaria, cujo titular é o vice-prefeito Adilson Pires, adota uma nova postura. Tanto que Abel teve de trocar parte da sua equipe. "As pessoas não compreenderam que o processo tinha outra filosofia. E algumas, quando se revestem da ‘armadura’ do serviço público, se acham um pouco policial”, criticou.
Da necessidade de conhecer melhor essas pessoas e aperfeiçoar o trabalho na secretaria, surgiu a “Análise do Censo da População em Situação de Rua na Cidade de Janeiro”, uma parceria entre a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social do Rio de Janeiro e o Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS). "Capacitamos 650 pessoas da secretaria e durante quatro dias visitamos pontos da cidade para entender a vida e os fluxos migratórios dessa população. Em 2013, constamos um número em torno de 7 mil pessoas — 5.400 nas ruas e o restante em abrigos”, disse Abel.
O subsecretário admitiu que os equipamentos públicos são ruins e por isso, muitos preferem ficar na rua. Segundo ele, a secretaria trabalha com dois tipos de equipamentos: os de longa permanência e os destinados somente ao pernoite. “Estamos reformando quatro grandes abrigos e construindo dois albergues para o pernoite, num modelo americano, com direito a janta e café”. Para ele, o grande fluxo grande e rotatividade dos abrigos de hoje não ajudam no trabalho da secretaria, pois dificultam a criação de laços entre equipe e usuários.
Perguntas e respostas
Muitas perguntas feitas no debate focalizaram a situação dos hotéis que hoje servem de abrigo. Leandro da Conceição reclamou do tempo máximo estipulado para a permanência: três meses. “Já somos moradores de rua, já temos dificuldades. Como vamos conseguir emprego em três meses?”, disse Leandro. Outro relato foi o de Batista, que contou ter ensino superior e falar várias línguas. Ele reclamou da degradação de um dos abrigos, situado na Ilha Governador: "Falta água, alimento e respeito.“Qual a solução?”. Yzadora Monteiro corroborou, acrescentando que, entre seus entrevistados, "a palavra mais usada para caracterizar esses lugares é inferno".
A jornalista ainda indagou Rodrigo Abel sobre a localização dos abrigos, citando dois deles, um na Ilha do Governador e outro em Paciência, situados em áreas dominadas pelo tráfico ou pela milícia: “Não adianta criar um aparato físico, ter bons profissionais se o entorno não propicia uma boa qualidade de vida”. Outra pergunta, lida pela mediadora Anabela Paiva, mostrou que políticas de habitação e emprego são essenciais na assistência social aos moradores de rua: “Ganho 800 reais, como vou pagar um aluguel de 600?”.
Em resposta, Rodrigo contou que vem tentando obter do governo federal prioridade para a inclusão da população em situação de rua no programa Minha Casa, Minha Vida. O governo respondeu que essas pessoas já são incluídas no programa, nas unidades destinadas ao público mais pobre. Ele prometeu avaliar uma possível extensão do prazo de permanência nos hotéis, que se destinam aos que estão em transição, deixando a moradia nas ruas. Segundo ele, cada caso deve ser avaliado individualmente. Reformas estão em curso em abrigos, mas ele enfatizou que estes equipamentos não são suficientes: “Não tem muita solução, a não ser aumentar o acesso ao mercado de trabalho e a renda dessas pessoas”.
Assistentes sociais também estavam presentes no debate. Nina, coordenadora do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) de Niterói, disse que as equipes de assistência não contam com o apoio de outros serviços. “Não existe bem estar social sem a saúde. Mas, se algum [morador de rua] está passando mal, o SAMU não recolhe, por exemplo. Nós trabalhamos praticamente sozinhos. Precisamos da justiça, habitação, educação e uma série de outras coisas”, defendeu.
Tanto o subsecretário quanto assistentes sociais queixaram-se da indiferença da sociedade em relação aos que vivem nas ruas. “A sociedade cobra uma solução para esse tema, custe o que custar. São poucas as pessoas que se preocupam. A maioria não quer aquelas pessoas perto. Querem na porta do vizinho, não na sua”, disse Rodrigo Abel, que leu duas das muitas mensagens eletrônicas que costuma receber, exigindo a retirada de indivíduos de praças e calçadas. Nina completou: “A mesma população que dá uma quentinha, um café, liga para nós e pede a retirada da população de rua. Mas, ajudar, ninguém quer”, alfinetou a coordenadora.
Diante de alegações da plateia de que os agentes da Secretaria obrigam moradores a deixar locais ou irem para abrigos, o subsecretário enfatizou que existem equipes da Defensoria Pública voltadas para garantir os direitos dos que se sentirem violados. Ele reiterou o compromisso de evitar qualquer "limpeza" da cidade dos moradores de rua, afirmando: "A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social não tem o direito de impor um padrão social de convivência a quem quer que seja. Não vejo outro significado para retomada de trajetória que não seja aquela que a pessoa quer”.
Assista aos melhores momentos da conversa:
Numa emocionante edição do "Conversas na Biblioteca", midiativista e pesquisadora discutiram os efeitos da política de drogas nas favelas do Rio
Em bate-papo na Biblioteca Parque Estadual, autores do Sensacionalista revelaram bastidores e o processo criativo das manchetes fictícias
Ana Paula Pelegrino e Raull Santiago discutem tema na próxima quarta-feira (24/2), a partir das 18h, na Biblioteca Parque Estadual