Um Plano de Estruturação Urbana elaborado pela Prefeitura tem sido a dor de cabeça dos moradores das Vargens Grande e Pequena. Caso seja aprovado na Câmara Municipal, o texto permitirá que construtoras façam prédios de grande porte na região e prestem serviços em áreas como saneamento e transportes. Em resposta ao projeto, os habitantes da localidade tomaram uma decisão radical: eles desenvolveram uma proposta para a ocupação do lugar onde vivem.
Foto: Estrada do Rio Morto, em Vargem Grande (André Luiz Pereira Nunes/Domínio Público)
Cerca de 30 pessoas se reuniram na última quarta (30) na sede da Associação de Moradores de Vargem Grande (Amavag). O objetivo do encontro era discutir o Projeto de Lei Complementar 140, de 2015 (PLC 140/2015), de autoria do prefeito Eduardo Paes. Em avaliação na Câmara Municipal, o texto muda a forma de ocupação e cede para a iniciativa privada o controle de serviços na região, a exemplo do que aconteceu no Porto. A iniciativa gerou a mobilização dos moradores, que criaram uma proposta própria para a urbanização da área.
Batizada de Plano Popular das Vargens, a novidade foi desenvolvida durante dois meses em um curso com estudantes, lideranças locais e outras pessoas. Primeiramente, os alunos identificaram quais eram os principais problemas da região. Falta de colégios, de hospitais 24h, de saneamento e de um sistema de transporte eficiente foram algumas das questões apontadas. Depois, formularam o plano. A preservação da agricultura e do meio ambiente são algumas das bandeiras defendidas pela Articulação Plano Popular das Vargens (APPV), entidade que organizou as aulas e toca os trabalhos, com apoio da UFRJ. "Um dos aspectos que consideramos prioritários são as remoções, já que há comunidades no caminho de grandes vias previstas no PLC 140/2015", afirmou durante o evento Mariana Bruce, membro da APPV.
O texto que está na Câmara estabelece um Plano de Estruturação Urbana (PEU) para as Vargens. Esse tipo de documento cria diretrizes para o crescimento de uma determinada área. "O objetivo do projeto é ocupar de forma racional o espaço, adensar onde houver lugar para isso e proteger regiões mais sensíveis que não comportem grandes adensamentos", explicaram por email representantes do Prefeitura. O PLC 140/2015 prevê a ampliação da infraestrutura na região por meio de uma Operação Urbana Consorciada (OUC), como é o Porto Maravilha. Nesse tipo de iniciativa, o Município permite que a iniciativa privada construa prédios maiores em uma certa área. Em troca, as empresas ficam responsáveis por acelerar a instalação de serviços naquela região. No caso das Vargens, estão previstas concessões na área de saneamento, transportes, drenagem e urbanismo - como tratamento de esgoto, fornecimento de água e criação de serviço de barcas, entre outros.
Com 50 quilômetros quadrados, o espaço dessa nova OUC compreenderia as Vargens Grande e Pequena e partes do Recreio, da Barra e de Jacarepaguá. Entretanto, o caráter limitado da proposta gerou a insatisfação dos moradores. "Queremos um PEU que traduza as necessidades reais da população", disse o advogado Jean Carlos Novaes na reunião da última quarta. Com mais de 40 mil habitantes, esse trecho da Zona Oeste repleto de sítios é dominado pela natureza, tem hoje menos de 30% de seu espaço ocupado por área urbana e pouco mais de 200 apartamentos - de acordo com informações do Armazém de Dados.
Além de criar seu próprio plano para a região, a APPV deseja que o Ministério Público investigue irregularidades no PEU das Vargens. Uma delas diz respeito aos estudos de impacto ambiental e de vizinhança que fundamentam o texto da prefeitura e não foram divulgados, como exige o Estatuto das Cidades. Outro problema é o fato do mesmo projeto instituir o PEU e a OUC ao mesmo tempo, o que também é proibido pelo Estatuto das Cidades. O certo seria haver uma outra lei tratando em detalhes das concessões de serviço. Os moradores também reclamam que não puderam expressar suas opiniões nas audiências públicas do plano, realizadas em maio. E questionam o estudo que deu origem ao PEU, feito pelas construtoras Odebrecht e Queiroz Galvão, conforme noticiado pelo Diário Oficial. As duas firmas já construíram empreendimentos imobiliários na região.
A principal inspiração do Plano Popular das Vargens é o Plano Popular da Vila Autódromo, que recebeu um prêmio na Alemanha em 2013. Desenvolvido pela associação de moradores e pescadores da favela a partir de 2011, o projeto também recebeu apoio da UFRJ em sua elaboração e propunha uma solução para o impasse que se formou por conta da construção do Parque Olímpico, situado ao lado da comunidade. No fim, a proposta não foi considerada pela Prefeitura e a maior parte dos residentes da localidade foi transferida para conjuntos do programa Minha Casa Minha Vida.
"Espero que não aconteça em Vargem Grande o que aconteceu na Vila Autódromo", afirmou o agricultor Francisco Caldeira no encontro na sede da Amavag. "Cada comunidade é uma realidade diferente", defendeu Jane Oliveira, ex-moradora da favela e integrante do Movimento União Popular pelo Direito à Moradia. "Fazer um plano popular é uma contestação do modelo vigente e uma forma de construir democracia dentro da cidade", opina Giselle Tanaka, urbanista da UFRJ e coordenadora do curso que deu origem ao Plano das Vargens.
O PLC 140/2015 não é o primeira PEU pensado para as Vargens. Em novembro de 2009, a Prefeitura chegou a aprovar na Câmara a Lei Complementar 104, que continha uma outra proposta para a urbanização da área. Porém, o texto não chegou a sair do papel por prever "índices de aproveitamento dos terrenos muito elevados para uma região ambientalmente frágil", conforme informa o projeto atual. A região em questão é vizinha do Maciço da Pedra Branca e serve de habitat para antas, jacarés e outros animais. Com a indefinição jurídica, a liberação para construção de novos prédios na área ficou temporariamente suspensa. Há um ano, o envio do novo PEU aos vereadores ressuscitou a questão.
"Minha impressão é que o PLC 140/2015 não será votado neste ano, já que o recesso na Câmara começa em duas semanas", afirmou durante a reunião o vereador Renato Cinco (Psol). A APPV planeja outros eventos envolvendo o Plano Popular das Vargens. Uma versão final do documento será divulgada no próximo dia 11, na feira que acontece todos os domingos no Largo de Vargem Grande. Já nos dias 17 de dezembro e 13 de janeiro, estão previstas atividades para divulgação do texto nas localidades de Taboinhas e Caeté, respectivamente. Enquanto a situação não se define, um dos últimos recantos verdes do Rio segue com seu destino em aberto.