Numa emocionante edição do "Conversas na Biblioteca", o midiativista Raull Santiago, do Alemão, e a pesquisadora Ana Paula Pellegrino, coordenadora da Rede Pense Livre, discutiram os efeitos da política de drogas nas favelas do Rio
(Foto: Erick Dau)
Apenas em 2015, 22 pessoas morreram e outras 44 foram atingidas em trocas de tiros no Complexo do Alemão, segundo o portal Voz das Comunidades. Neste 2016 que acaba de começar, já houve 2 mortes nessas circunstâncias. Tudo isso em uma população de 69 mil habitantes — o que equivale a cerca de 31 mortes por 100 mil habitantes, quase o dobro da taxa de homicídios do Sudestes verificada pelo Ministério da Justiça.
"A favela está muito envolvida no que diz respeito à política de drogas, mas do lado mais difícil e violento", sintetizou o midiativista Raull Santiago, morador do Alemão e integrante do Coletivo Papo Reto, em bate-papo na Biblioteca Parque Estadual na última quarta-feira (25/2). O evento foi a décima edição do Conversas na Biblioteca, ciclo realizado desde o ano passado pelo Vozerio.
"A única atuação das políticas públicas no Complexo tem sido através da política de segurança: os moradores são olhados pela mira de um policial", continuou Raull. Ele falou ao lado da pesquisadora Ana Paula Pellegrino, do Instituto Igarapé e coordenadora da rede Pense Livre, sobre os efeitos do proibicionismo das drogas no Rio — sobretudo nas favelas.
Em uma fala emocionada que impactou toda a plateia, Raull contou como é viver em um lugar onde acontecem tiroteios diários, a qualquer momento, em qualquer lugar da favela. "Na favela, não tem bala perdida: porque a bala vai reta e a favela é curva." O midiativista também contou estar realizando um balanço para avaliar quem são os jovens envolvidos com a criminalidade no Alemão — os varejistas das drogas: "Tenho visto que a idade média do crime está entre 14 e 15 anos. E esse trabalhador do tráfico se renova muito facilmente, porque o índice de morte também vem aumentando", explicou Raull.
Para Ana Paula, é importante dar "dois passos para trás" e entender o que a atual política de drogas — que existe há meros 50 anos — é de fato. "A ideia inicial era controlar substâncias que podem causar mal. Foi criado todo um aparato de legislação, programas e políticas para lidar com essas substâncias e com as pessoas que as utilizam. Na ponta, essa ideia se transformou em intervenções ostensivamente armadas em territórios já marginalizados", resumiu a pesquisadora, acrescentando que esse é um problema vivido praticamente pro toda a América Latina.
Drogas e preconceito
Quando se soma as estatísticas de mortos nas favelas cariocas ao dado de que77% dos mortos pela polícia no Rio são negros e pardos, é difícil não ver uma correlação entre política de drogas e preconceito. "Quando você está saindo da Maré, a abordagem que sofre é ’Encosta aí, negão, diz logo onde está a droga’", descreveu Raull. "E, no fim das contas, a guerra às drogas é feita por pretos, pobres e nordestinos contra outros pretos, pobres e nordestinos."
Ana Paula lembrou a distinção muitas vezes manifestada por veículos da mídia ao tratar de prisões relacionadas a drogas na favela. "Quando se fala de droga na favela, é sempre tráfico, nunca uso. Quando pegam um menino com droga, nunca é usuário, é traficante", explicou. A pesquisadora do Igarapé também lembrou das estatísticas de homicídios no Brasil: 58 mil mortes violentas em 2014, das quais mais de 70% foram de pessoas pardas ou negras. "Como sociedade, nós ainda não temos fôlego para dizer que isso é um problema e que precisamos enfrentá-lo", avaliou Ana Paula.
Disputa de facções
Ao avaliar os impactos da política de pacificação no Complexo do Alemão, Raull foi taxativo: "Muito marketing e pouca ação prática." Alguns grupos de policiais da UPP do Complexo, contou ele, foram apelidados pela população de "plantões do mal": "a galera que, quando está na favela, você sabe que vai ter problema", resumiu Raull.
Numa aparente disputa de espaço com o tráfico, esses grupos de PMs se transformam, aos olhos da população que vive a violência cotidiana, em mais uma facção. "Isso tem impacto na vida de jovens que, pela revolta, veem o tráfico como um caminho", explicou Raull.
Mas e a descriminalização? É um caminho? Questionado por um espectador na plateia sobre a efetividade da regularização das drogas no Brasil, Raull lembrou que é preciso pensar com cuidado no impacto sobre as favelas. "Quero perguntar: e aí, legalizou. Vai ser igual ao funk — que hoje em dia não pode ter baile em favela mas toca em todas as boates da Zona Sul?"
Para Ana Paula, é difícil prever de fato como seria um Brasil onde as drogas fossem reguladas. "Temos que pensar juntos. Mas, da maneira como é hoje, a política de drogas funciona como um entrave ao pensamento", avaliou. Citando países como a Holanda, Estados Unidos e Uruguai, que adotaram sistemas diferentes de regulação, ela completou:"Existe um mundo de opções de políticas que precisamos experimentar com responsabilidade."
E, em meio a tanta violência e morte, há esperança? Raull leva no braço uma tatuagem para lembrá-lo de que sim — é preciso ter esperança. "Carrego esta tatuagem não é porque eu acredito muito não, pelo contrário. É porque, diante do que eu vivo, diante do que eu vejo, diante do que eu sinto, diante do tanto de situações que me afunilam, me deixam sem ar, eu criei um imaginário de que quando a gente está triste, cansado, olha para baixo. E aí, se eu ficar desanimado e olhar para baixo, vou ver isso no meu braço: "Acredite". Porque, ao mesmo tempo que é muito difícil fazer o que a gente faz, a gente vê alguns resultados positivos. Vocês estarem aqui hoje, isso é positivo".
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