Debate na Biblioteca Parque Estadual abordou como o medo e até a compaixão podem incentivar métodos punitivos violentos, inclusive a ideia de se fazer "justiça" com as próprias mãos.
Como combater a criminalidade sem aumentar o medo e utilizar mais violência? Esse foi o principal ponto discutido durante a quinta edição do Conversas na Biblioteca, realizada ontem (29/9) pelo Vozerio na Biblioteca Parque Estadual, no Centro. Debateram o tema o filósofo Paulo Vaz, professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Pedro Strozenberg, secretário Executivo do Instituto de Estudos da Religião (Iser).
Pedro começou o debate lembrando que os linchamentos — assunto muito discutido recentemente — são acontecimentos recorrentes, que reaparecem de tempos em tempos. “É o retrato extremo de uma sociedade que está se sentindo amedrontada e reage em cima daquela população que, de alguma maneira, produz o medo”, avaliou.
O especialista em segurança pública acredita que o medo é uma das marcas da sociedade carioca, manifestando-se até em situações cotidianas. “As pessoas que já moraram fora veem a diferença. Quando você pede uma informação no Canadá ou na Noruega, as pessoas explicam com tranquilidade. Agora, vai pedir uma informação em Costa Barros...”, desafiou.
Apesar de reconhecer que é preciso saber lidar com os grupos que pedem linchamentos, Pedro afirmou que eles, na verdade, não formam uma maioria. "A grande massa não quer sujar as mãos, ela quer que o Estado faça isso”, disse.
Um reflexo dessa percepção seria a demanda de parte da sociedade por um Estado mais punitivo — embora o tamanho da população carcerária brasileira, a quarta maior do mundo em números absolutos, demonstre que isso já seja verdade. "Temos uma inversão na sociedade: pensamos que nossa segurança está baseada na ostensividade da violência. Nós nos sentimos mais seguros quanto mais próximos da violência estamos”, apontou Pedro.
Por isso, ele lamentou a comemoração de parte da população frente ao grande número de policiais presentes nas praias da Zona Sul no último fim de semana, em reação às recentes notícias de arrastões. "É igual inaugurar presídio, nós tínhamos que sentir vergonha. Não temos que celebrar”, criticou.
Outro ponto criticado por Pedro foi a naturalidade com que assuntos “bárbaros” são tratados, como a notícia da morte de um policial, arrastado por um cavalo, ser seguida pelo resultado de um jogo de futebol em um telejornal. “A gente naturalizou esse cenário de violência”, lamentou. Para Pedro, notícias como essa não só retratam a violência, como acabam por estimulá-la. "É um efeito circular, perverso”, define.
Pedro lembrou também que alguns fatos noticiados na mídia recebem um destaque desproporcional, em relação a outros. “Como uma imagem daquele menino sírio afogado provoca tanta comoção, e situações rotineiras não têm a mesma capacidade de sensibilização?”, questionou.
Imprensa direciona a sensibilidade
Em sintonia com as afirmações de Pedro, Paulo Vaz explicou como o sentimento de compaixão pode provocar a sensibilização frente a um determinado ato bárbaro, mas não a outro. "A compaixão é extremamente seletiva”, afirmou o filósofo. Ele lembrou que, quando morou nos Estados Unidos, ficou impressionado com a forma como as pessoas comemoravam a Guerra do Iraque, mas se indignavam com um jogador de futebol americano que apostou em brigas de cachorro. “[As pessoas] se sensibilizavam com o cachorro, mas não com os iraquianos que morriam”, contou.
O problema seria maior porque essa mesma compaixão pode estimular a vingança. “A compaixão implica o medo”, destacou Paulo. "O temor de que algo semelhante aconteça com a própria pessoa faz com que ela defenda métodos punitivos."
A imprensa teria um papel fundamental na construção desse fenômeno. “A nossa sensibilidade em relação ao outro é muito marcada pelos meios de comunicação”, destacou.
Para demonstrar o papel da mídia na construção da sensibilidade, Paulo mostrou que, no início do século XX os meios de comunicação buscavam entender as causas dos crimes, criando, de certa maneira, uma empatia com os criminosos. “A audiência era convidada a se mobilizar politicamente, a se ver como corresponsável”, relatou.
Hoje em dia, segundo Paulo, a narrativa midiática descreve o agressor como um ser "monstruoso", e o público é tratado de forma inocente. “Hoje, você corta qualquer tipo de sensibilidade com o criminoso. O único lugar de compaixão é com a vítima."
Outro ponto em comum defendido pelos dois foi o fato de parte da população sempre reclamar que o Estado não é suficientemente punitivo. “E nunca vai ser. Para proteger a vítima, o Estado pode tudo”, apontou Paulo.
Falta de diálogo
Questionado por um integrante da plateia sobre qual o papel da população em um cenário de violência, Paulo lembrou que o julgamento não pode ser baseado em uma avaliação pessoal. “Cada vez mais pensamos a sociedade como indivíduo. E, ao se pensar a sociedade como indivíduo, volta esse tema da vingança e de um Estado que ocupa o lugar [do ator] da vingança", explicou.
Pedro, por sua vez, considera problemático que o Estado não seja mais ocupado pela sociedade civil. "A sociedade civil tem produzido diversas iniciativas positivas, mas muitos desses projetos não refletem na institucionalidade", argumentou ele. "Temos uma fragmentação absoluta e uma incapacidade dessa energia ser direcionada”, lamentou.
A solução, para ele, seria aprender a se apropriar de instituições públicas. “O Estado é a forma de conseguirmos transformação de massa”, garantiu. Pedro destacou ainda a necessidade de construção de pontes: “O que eu acho que nos falta, fundamentalmente, são espaços de diálogo."
Para que esse diálogo ocorra, segundo Paulo, a resposta não seria evitar o sentimento de compaixão, mas "remover as barreiras construídas em relação à solidariedade e saber que elas são construídas cotidianamente pelos meios de comunicação."
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