Para muitos, pichação é sinônimo de baderna, irresponsabilidade, dano ao patrimônio - e só. Mas que outros significados estão por trás dessa prática, que existe há tanto tempo nas maiores cidades do mundo, inclusive o Rio? Nos últimos anos, o professor da Uerj Gustavo Coelho tem se dedicado a responder essa pergunta.
O acadêmico começou a estudar o tema para seu mestrado em 2008 e, desde então, nunca mais parou. Em 2013, Gustavo trabalhou por seis meses em Paris, no laboratório do sociólogo Michel Maffesoli, que popularizou o conceito de tribo urbana. Em 2015, apresentou uma tese de doutorado que aborda não só a pichação, mas também as turmas de bate-bola do subúrbio, as torcidas organizadas dos times de futebol e os violentos bailes funk da década de 1990.
Mal-vistas pela população em geral, essas práticas culturais foram analisadas por ele sob a ótica da estética. Para o pesquisador, os temas abordados por seu estudo funcionam como "berços de acolhimento para vidas desacolhidas".
Veja alguns dos melhores momentos do bate-papo dele com o Vozerio.(Foto: Domínio Público)
Eu já tinha algum envolvimento com os temas desde o começo da adolescência. Com o passar dos anos, minhas memórias terminaram dando origem à minha pesquisa, que dá atenção a práticas culturais populares sem lugar consolidado na cultura popular carioca, diferentemente do que acontece com o samba e até o funk. Bate-bolas, bailes de corredor*, piXação¹ e torcidas organizadas movimentaram gerações de jovens e deram origem a um repertório de histórias que ocupa a mente de várias pessoas há muitos anos. Minha tese de doutorado se propõe a ser uma análise comportamental e estética dessas práticas. Ela tenta mostrá-las não como atividades esporádicas ou irresponsabilidade juvenil, mas como componentes de uma linguagem, de uma cultura que faz parte da forma como as pessoas se relacionam com a cidade. Essas manifestações são irmãs, nesse sentido.
[*Populares na década de 1990, os bailes de corredor (ou de galera, também conhecidos como Lado A x Lado B) eram festas onde a briga entre turmas de diferentes bairros era a atração principal. O termo "corredor" é uma referência ao espaço que se formava durante o baile entre os dois grupos que estavam em conflito]
Minha tese de mestrado era sobre piXação e, quando comecei a estudar torcidas organizadas, me deparei com vários piXadores que também faziam parte do mundo das torcidas. Depois, quando me aprofundei na análise dos bate-bolas, conheci turmas que tinham símbolos de torcidas desenhados em suas garagens e fantasias. E o baile de galera foi o principal caldeirão dessas rivalidades, embora nos últimos anos inclusive parte do movimento funk renegue esse tipo de experiência e a entenda como algo superado, um passado a ser esquecido. A existência dessa rede interligando as práticas é algo de que eu já desconfiava e que confirmei ao longo da pesquisa. Elas têm em comum a característica de serem berços de acolhimento para vidas desacolhidas. Quem se envolve normalmente é o jovem das camadas mais populares, que, em geral, é visto pela sociedade como uma praga, ou seja, aquilo que precisa ser eliminado. Sendo assim, ele não é bem-vindo onde há conforto, não é acolhido em uma base social amplificadora de sua enunciação, sendo expropriado assim da possibilidade de "ser", ou seja, da cidadania. Tendo que lidar com essa desapropriação de si, seja mais conscientemente ou menos, os temas da inadaptação, da monstruosidade, do terror, passam a ser matéria prima estética e ética na tarefa vital de se inventar a partir desse exílio. Meu trabalho é uma tentativa de dizer "sim" a esses resultados estéticos exuberantes, mesmo que controversos e perigosos, uma vez que o "não", seja o da absoluta negação, seja o da dissimulada aceitação mediante conversão aos temas da bondade, é justamente, a meu ver, a perpetuação da ferramenta de "exílio" que os desautoriza inclusive a (re)constituir-se plenamente. Aí, surge o funk do bem, o bate-bola bonzinho e o grafite passa a ser legal (e não a piXação).
No último carnaval, o canal Globo News produziu um documentário acompanhando algumas turmas de bate-bola, entre eles a Turma do Barró de Marechal Hermes. O nome é uma referência à língua do TTK, surgida na piXação. [Na língua do TTK, as posições silábicas das palavras são invertidas, com as últimas sílabas ocupando o espaço das primeiras e assim por diante. Acredita-se que o nome TTK seja uma referência ao bairro do Catete, onde teria surgido o código] Logo, a turma do Barró — roubar foneticamente ao contrário — é uma turma que, na importante tarefa de se nomear, zomba da estabilidade das propriedades e lança mão dessa expressão popular "barró" para bagunçar o coreto das posses. No entanto, quando você põe os caras de frente para a câmera de TV, eles intuitivamente sabem que estão diante de uma máquina de tradução movida pelas gramáticas de uma certa "república dos bons sentimentos" (MAFFESOLI, 2009), justamente aquele setor da cidade e do discurso, que combate e amputa suas existências, inibindo suas falas. Daí, dizem então que estão pensando em mudar o nome da turma e abandonar os temas do "Mal". Se isso é verdade ou não, pouco importa, o que me importa é que há muitas décadas eles se chamam assim, são reconhecidos como uma das principais e mais temidas turmas do Rio, mas quando estão diante dessa máquina de transmutação moral que é a câmera de TV, optam taticamente por um apaziguamento incongruente justamente às estéticas que deram forma aos bate-bolas. Em outras palavras, a demanda pela bondade diante das culturas populares é uma máquina esquizofrênica. Os bate-bolas são fantasias pensadas para serem assustadoras e é interessante como alguns itens entendidos como ferramentas da boa vida, como o leque e a sombrinha, compõem esse visual com ironia, mas sem escravizá-los à "bondade", o que seria o fim do bate-bola. A bexiga, também objeto mutante, camuflado, sempre é presa a uma barra, que pode ser tanto alegoria quanto arma. É como nas torcidas organizadas, onde as bandeiras e os cantos expressam essa ideia de mal, que é um elemento fundamental dessas práticas. Não à toa, os aparelhos das equipes de som nos bailes de galera eram retratados simbolicamente como monstros com nomes de descarte, a coisona, o troço, o kkreco, o bagulhão, o fedorentão.
Isso envolve várias questões. A ideia de carioquice abraçada pelo prefeito, por exemplo, sempre favorece valores estabelecidos. Paes é um malandro às avessas. Construiu o Museu do Amanhã sem nem mencionar o passado de escravidão que existe naquele local. Iniciativas como essa refletem o esforço do Rio para fazer parte de uma agenda global onde o bem-estar, o acolhimento e harmonia ficam à serviço do grande mercado. É a cidade-espetáculo, onde a estética moderna convive apenas com a poética sob controle. Daí, a predileção pelo grafite em detrimento da piXação. Na piXação, a linha contínua não gera nenhuma forma reconhecível. É algo que chega a ter algum parentesco com a loucura até, que foge ao entendimento. A lógica de construção da cidade hoje opera para fazê-la catalisadora do fluxo de capital mundial. Tudo que é resistência, deve ser controlado. E a piXação é uma das práticas nessa situação.
Não. Não é só o pobre que lida com isso, todos nós temos de lidar em algum momento com o mal-estar da civilização. Entender as sensações menos controláveis como ruins é algo que acontece para todos. A pobreza só radicaliza esse processo. Eu gosto muito de citar o Bataille (Georges Bataille, pensador francês) em relação a isso. Ele dizia que a sociedade burguesa ocidental avançou em termos de aquisição, mas perdeu em termos estéticos. Nesse ponto de vista, os mais ricos financeiramente são os esteticamente mais pobres. Mas piXação, torcida organizada e outras práticas não são restritas às camadas populares. Elas estão abertas para qualquer um que procure um pouso. E isso pode incluir um adolescente de classe média, por exemplo. O nascimento da sexualidade, a sensação de ser algo que vive, podem levá-lo a entrar em contato com essas práticas que estudei.
A piXação é uma escrita com um fôlego poético que vem do lugar menos esperado, justamente onde existe mais analfabetismo. É a letra sem a dureza da gramática. A escrita piXadora existe sob a tensão entre a ideia de "escrever para esclarecer", como costumamos fazer no dia a dia, e a ideia das "letras que formam um enigma", menos usual. É uma escrita libertadora nesse sentido, em que o significado é sacrificado em favor da forma. Para mim, o piXador não alveja só a sacralidade da propriedade privada quando piXa, mas também a da propriedade do sentido. É diferente do grafite, que é uma forma de expressão mais organizada e, por isso, mais aceita. Para o piXador, a letra não é só uma ferramenta, é sua vida de fato. Isso dá à prática uma potência criativa difícil de encontrar no mundo atual. É algo parecido com o cuidado dos copistas com as letras capitulares na Idade Média. É diferente do que se vê numa banca de jornal, onde todas as letras são praticamente iguais. Por isso, tem despertado o interesse de vários pesquisadores. Tenho um amigo designer que reúne fotos de piXação numa página no Facebook chamada Passei e vi. O assunto hoje é abordado também em livros especializados e outros ambientes de arte.
Minha tese é de que aqui, o traço tem mais a coisa do malandro, que, em vez do combate de frente, opta mais pela esquiva. Mas não tenho conhecimento técnico para provar isso.É bom lembrar que a piXação é um fenômeno popular coletivo, onde sua unidade de existência não está em "uma piXação", mas na obra completa, ou seja, na cidade inteira. PiXação é mais um fenômeno do que uma acontecimento episódico isolável em um único piXo. Em todo caso, segue sendo protagonizado, obviamente por pessoas piXadoras, autores dessa cidade. Por isso, há diferenças no estilo carioca em relação a São Paulo, por exemplo. Em São Paulo, a tendência é o piXador querer ocupar o muro inteiro. Já aqui, numa parede de pedra, por exemplo, cada um só piXa uma pedra, porque a técnica para piXar num tamanho menor é reconhecida como um sinal de talento.
Sim. Locais difíceis exigem mais técnica, coragem, equilíbrio emocional, assim como ocupam com mais presença os fluxos comunicacionais, dimensão protagonista da cidade contemporânea, e, por isso, despertam o interesse dos piXadores. Nesse sentido, o relógio da Central é a Meca da piXação. O primeiro a piXar lá foi o Vinga, que pode ser considerado o Pelé da piXação. Ele é tão respeitado que, onde há o nome dele, não se piXa por cima. Ali em Laranjeiras, na saída do túnel Santa Bárbara, havia um muro com uma piXação dele bem no meio e outras 70 em volta. Esse local era considerado pelos piXadores uma super relíquia. Aí, o Instituto Eixo Rio, que tem trabalhado com a ideia de embelezar a cidade em sintonia com o paradigma da carioquice demandada publicitariamente pela prefeitura, criou em cima desse muro um grafite com o rosto da Cássia Eller. Isso é complicado, porque esse instituto está se tornando fundamental não no debate dos sentidos e papeis das intervenções urbanas, mas sim numa curadoria feita com verba pública mas sem consulta pública, uma espécie de comando de uso capitalista do decreto do Graffiti. Um decreto que, a meu ver contem inclusive problemas de ordem jurídica, já que lei só poderia reger a "liberalização de superfícies" mas não a estética que será exposta, sendo isto censura. Em outras palavras, lei pode tornar público e livre à intervenções espaços da cidade mas não fazer curadoria. Pois bem, como textualmente o decreto trata o Graffiti como inibidor da piXação, e é literalmente assim que está escrito lá, eu o considero no mínimo passível de questionamento jurídico quanto à sua legalidade.
A consequência desse tipo de atitude é reforçar a distância entre grafite e piXação, entre ordem e desordem. E reforçar isso é, no limite, reforçar a ideia de que o piXador tem que morrer. Minha preocupação é de que a vida esteja acima de tudo. Pois bem, voltando à questão anterior, a ferramenta do decreto inibidor da piXação, acaba por reforçar a distinção não somente estética, mas moral e civilizatória entre Graffiti e PiXação, ou seja, fomenta o já forte imaginário social que sustenta a ideia de que piXador pode e "deve" ser linchado publicamente. Voltamos às primeiras questões sobre a relação entre essas vidas e a metáfora da praga, da escória. Esse processo que eu descrevo não acontece só aqui no Rio. Nesta semana, a revista Vice noticiou que, em Bolonha, o Blu apagou os próprios grafites. Ele é um dos maiores grafiteiros do mundo e não estava de acordo com a ideia de que suas obras contribuíssem para a espetacularização da cidade. É uma ideia aos grafiteiros do Rio, já que sei bem que muitos deles estão em acordo com esses questionamentos tratados aqui, muito embora eu entenda que precisem legitimamente de garantir seus sustentos financeiros.
A piXação é uma energia que existe porque está em tensionamento. Não acredito que o mundo de piXadores seja o ideal, mas penso que o mundo gramaticalmente formulado vai ter de conviver com a piXação. O importante é que, quanto mais tivermos uma cidade que diz sim a seus habitantes, mais dignidade essas pessoas vão ter. Não acho que se possa alcançar um equilíbrio, mas vivemos um processo desarmonioso que origina essas poéticas da existência. Penso que, naquilo que queremos aniquilar, pode estar a chave de uma vida mais digna. Será que a piXação é apenas uma atitude irresponsável a ser combatida? Desde a década de 1960, todas as grandes cidades do mundo têm sido rabiscadas. É algo comum, popular. Será que é só irresponsabilidade? Creio que ela pode ser sintoma de outras coisas que não estão sendo observadas devidamente. Esse texto foi alterado em 22/03/2016 às 15h10: a pedido do entrevistado, novos trechos foram acrescentados às respostas das perguntas 2, 3, 7, 8 e 9. Além disso, substituímos nas respostas a grafia correta (pichação) por piXação, também a pedido do entrevistado. Segundo ele, há uma diferença conceitual entre os dois termos, que pode ser compreendida por meio da leitura de seus trabalhos
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