Projeto Guiadas Urbanas promove passeios turísticos para valorizar a cultura e a história do subúrbio carioca. Roteiros incluem Penha, Madureira, Salgueiro e Marechal Hermes
(Foto: Mauro Pimentel/Vozerio)
Domingo, 10h. O Largo da Penha, no bairro de mesmo nome, está quase vazio. A exceção é um pequeno grupo de moradores, reunidos ao redor de um rádio. Do aparelho, ressoa a voz de Baby do Brasil: “Eu fui à Penha/ fui pedir à padroeira para me ajudar”. A coincidência marcava ali o começo de um roteiro do Guiadas Urbanas, projeto turístico voltado para o subúrbio do Rio.
Os guias são o casal Karolynne Duarte, de 32 anos, e Vilson Luiz, de 35, que chegaram acompanhados de seu filho, o pequeno Zyon, de apenas sete meses. O passeio percorreu o Santuário da Penha, passou pela Vila Cruzeiro e terminou na feijoada do Cacique de Ramos, tradicional bloco carnavalesco (veja as fotos do tour ao final da matéria).
Antes de começar, o casal explica que o subúrbio já foi uma região valorizada, e que a intenção do Guiadas é resgatar esse capital simbólico. “As pessoas não conseguem enxergar o potencial turístico do subúrbio”, lamenta Karolynne. Essa falta de interesse, segundo ela, viria inclusive dos próprios moradores. Por isso, um dos objetivos do projeto é mostrar que esses bairros têm cultura e história.
Para Vilson, a baixa procura por esse tipo de turismo é influenciada pelas empresas do setor. “As pessoas não sabem, pois as grandes agências direcionam”, critica. “Tem gente que pega o mapa da RioTur e me pergunta: ‘O que tem depois disso aqui?’”.
Ele faz questão de diferenciar o Guiadas da maior parte dos passeios turísticos feitos em favelas — sobretudo os realizados em jipes, que ele considera “degradantes”. “O principal elemento do nosso passeio é o morador. Ele que está ali no dia a dia”, ressalta.
União entre morro e asfalto
O tour começa passando em frente ao Parque Shanghai, pequeno parque de diversões que funciona no bairro desde 1966. “É um parque tímido”, afirma Vilson. “Durante muito tempo, foi um dos principais pontos de diversão da região.”
Enquanto equilibra o carrinho de Zyon pelos planos inclinados que facilitam a subida do morro, o casal conta a história do santuário que dá nome ao bairro: a devoção começou em 1635, quando foi construída uma pequena capela. Embora admitam que a Penha não existiria sem a igreja, Karolynne e Vilson explicam que a ideia é ir além dela e falar da cultura local.
Um exemplo é a Festa da Penha, realizada em outubro desde 1816. A celebração ficou famosa por reunir representantes de todas as classes sociais. “A festa fazia uma ligação entre morro e asfalto”, relata Karolynne. O encontro entre trabalhadores e patrões, regados a álcool, muitas vezes terminava em brigas, segundo ela.
Ao longo dos anos, a festa foi embalada por diversos ritmos. Primeiro, foi jongo, dança inventada por escravos. Depois, veio o samba. “Quando ainda não existia rádio, as pessoas vinham para cá apresentar seu samba”, conta Karolynne. A celebração funcionava como uma espécie de termômetro: se a música fosse aplaudida ali, era sinal de que faria sucesso no Carnaval.
Para chegar ao Santuário da Penha, não é mais preciso escalar os 382 degraus que fizeram a fama do local: um terceiro plano inclinado facilita a subida. Dentro do aparelho, Vilson conta histórias da escadaria. Além de ser um espaço tradicional de pagamento de promessas, ela às vezes é utilizada no treinamento de atletas. Na Festa da Penha, crianças costumam aproveitar a tradicional lavagem para transformá-la em um tobogã.
Além das esferas religiosa e lúdica, a escadaria também já serviu para um propósito bem diferente: na década de 1970, um carro da Fiat subiu aqueles degraus, em um comercial da marca. “Já tinha ouvido falar disso, mas não sabia se era verdade”, comentou a funcionária que opera o plano inclinado ao ouvir a história.
Um diferencial do passeio do Guiadas é a visita à sacristia do santuário, que costuma estar fechada aos visitantes. Lá, há um belo altar para Nossa Senhora do Rosário — para quem a igreja era originalmente dedicada.
Ao meio-dia, tocam os tradicionais sinos. Karolynne explica, no entanto, que o instrumento não é mais utilizado: o som é apenas uma gravação. A conservação da igreja preocupa os guias. “Está precisando de uma restauração”, comenta Vilson.
O tour serviu também para lançar uma nova iniciativa: fitas coloridas, semelhantes às do Senhor do Bonfim que dominam a igreja do santo em Salvador, serão vendidas a R$ 0,20 na próxima festa. A ideia é amará-las ao corrimão da escada. A sugestão, feita pelo casal, foi atendida pelo padre Thiago Sardinha, responsável pela administração da igreja.
Retorno às origens
O tour segue pela Vila Cruzeiro, favela localizada ao lado da igreja e onde Vilson nasceu e morou até se mudar para Quintino, bairro no qual mora hoje. A violência na comunidade afastou muitos do Santuário mas, para Karolynne, a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), em 2012, melhorou a situação. “A pacificação trouxe isso de bom. Mas não adianta pacificar sem colocar atividades culturais”, alerta.
A guia relata que algumas pessoas querem fazer o passeio, mas acabam desistindo devido à violência, principalmente na Penha. Outras têm receios, mas decidem ir e acabam desmistificando a ideia.
Além de passar pela casa onde morou, Vilson encontrou diversos conhecidos, incluindo três primos e um colega do ensino médio. “Família em favela é assim, se entrelaça”, brinca.
O passeio pela infância evocou algumas memórias do guia. Ele lembrou, por exemplo, que as crianças acreditavam que um morador com unhas sujas e barba era um lobisomem. Também havia o temor de que havia sacis no terreno da igreja.
Curso para jovens
O “Guiadas”, criado em janeiro de 2013, realiza passeios abertos como esse todo terceiro domingo do mês. Também é possível escolher roteiros personalizados. Além disso, o casal tem uma parceria com o setor de intercâmbios da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) e organiza visitas exclusivas para alunos estrangeiros.
Os roteiros incluem ainda Madureira, Cascadura, Irajá, Méier, Salgueiro, Marechal Hermes e Cais do Valongo. Para planejar cada um, realizam uma pesquisa de cerca de 15 dias. Os guias acreditam que os favoritos são o de Penha, Marechael Hermes e Madureira, que já reuniram entre 15 e 20 pessoas.
Um novo desafio começará em janeiro de 2016: eles darão aulas de turismo para jovens da Penha, entre 15 e 29 anos. “Já pensou, no futuro, ter uma galera guiando, um monte de adolescentes?”, vislumbra Vilson. A iniciativa foi contemplada com um edital do projeto Favela Criativa, da Secretaria Estadual de Cultura.
Outro desejo é fazer um roteiro focado nas comunidades quilombolas remanescentes do Rio de Janeiro, passando pela Lagoa Rodrigo de Freitas, por Paraty e por Búzios. Vilson revela também a intenção de organizar trilhas nas florestas que rodeiam o morro da Penha.
O casal garante que o valor sugerido para o passeio (R$ 35) é uma forma de cobrir os custos, e não de lucrar. Não queremos ficar ricos”, garante Vilson. Ele reconhece, no entanto, a vontade de tornar a atividade sua principal fonte de recursos.
Para ele, não há problemas no surgimento de iniciativas semelhantes. “Tem mercado para todo mundo”, garante.
Depois de três horas, o passeio terminou na sede do bloco Cacique de Ramos, onde estava sendo oferecida uma feijoada. Lá, clientes do Guiadas elogiaram o passeio. Ana Carolina Minguta, professora de francês e moradora de Vila Isabel, disse que as pessoas vão sempre aos mesmos lugares porque têm dificuldade de sair da sua zona de conforto. “O Rio de Janeiro é imenso, mas você não vê uma curiosidade pelo subúrbio”, lamenta.