A primeira Unidade de Polícia Pacificadora foi criada no fim de 2008, no Santa Marta, na zona sul do Rio. Oito anos depois, Vozerio conversou com moradores de favelas que passaram pela experiência para recolher impressões, opiniões e expectativas em relação ao projeto
Foto: policial armado e morador no Parque Proletário, no Complexo da Penha (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Qual será o futuro das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)? Em meio a crise financeira por que passa o estado, essa é uma das perguntas que intriga os cariocas.
O projeto, que completa 8 anos neste mês de dezembro, permitiu a retomada de territórios pelas forças de segurança e a diminuição de confrontos armados. Além disso, foi fundamental para a redução da taxa de homicídios no estado, que, em 2012, ficou abaixo da média nacional pela primeira vez em 32 anos.
Entretanto, mudanças no formato original, a ausência de mecanismos de avaliação crítica e casos como o do pedreiro Amarildo (Rocinha, 2013) e do menino Eduardo (Alemão, abril de 2015) são apontados por estudiosos como graves falhas da iniciativa. Em 2016, muitas áreas de UPP sofreram com conflitos armados. Vozerio conversou com moradores de favelas ocupadas e a maioria se mostrou pessimista em relação ao futuro do programa. Veja abaixo alguns depoimentos.
A insegurança isolava o Morro dos Prazeres do resto do Rio antes da UPP. Operações policiais bem violentas eram comuns. Lembro muito da educação e da gentileza dos PMs na inauguração, em 25/02/2011. Logo de início, os principais aspectos positivos foram a possibilidade de denunciar os excessos policiais e dialogar com o resto da cidade. Tivemos sete anos para nos articular e obter melhorias em saúde, educação e outras áreas por meio do contato com diretores de escola, empresários e outras pessoas. O ponto negativo foi a incapacidade do poder público de levar a coisa adiante. Ficou só a polícia. Quando veio a história do Amarildo, a inabilidade do Estado de responder me chocou. Eu, como entusiasta, não tinha mais argumento para quem me dizia que tudo seguia igual. A ideia de polícia de proximidade caiu por terra. Se a gente não teve vontade política com dinheiro, sem dinheiro é que não vamos ter nada. Não acho que o projeto vai acabar, mas acredito que ele será abandonado à própria sorte.
(Charles Siqueira, ativista comunitário e morador do Morro dos Prazeres, ocupado desde 25/02/2011)
Antes da UPP, a violência era resultado do abandono do morro pelo Estado. Em 2009, as ações policiais se intensificaram e enfraqueceram o tráfico. Quando criaram a UPP, o Bope entrou sem dar um tiro. Um ponto positivo dos três primeiros anos foi a redução dos confrontos. Havia uma troca boa entre moradores e policiais. As primeiras equipes não tinham certos vícios. Mas sempre cobramos políticas públicas de longo prazo. E as ações aqui duraram, no máximo, dois anos. A polícia de proximidade se desfez com a troca dos PMs. Tudo voltou ao anormal. Em 2013, fizemos um ato contra o toque de recolher e outras medidas. Isso foi antes do Amarildo, que foi um caso extremo. Nossa mobilização era para que as coisas não chegassem nesse nível por aqui. Desde então, acho que se não se pensar em saúde, educação e outras áreas, tudo ficará assim ou pior. O fim das UPPs não seria um susto nem uma surpresa. Mas seria triste saber que o estado abriu mão de vez de tudo, até de uma política que é questionável.
(Kennedy Lemos, educador social e morador do Morro do Borel, ocupado desde 07/06/2010)
O Santa Marta era como qualquer favela, com tiroteios e ações policiais. Depois da ocupação, a segurança cresceu. Com ela, vieram mais turistas, novas ONGs e órgãos públicos. Mas houve problemas também. Ninguém estava preparado para a UPP. Houve abuso de autoridade, resistência dos moradores e outros conflitos. Não é de um dia para o outro que você transforma uma comunidade de 80 anos. Perto desse tempo, a UPP ainda é uma criança. Ainda há muita desconfiança, por conta da corrupção policial de antes. Mudar exige tempo e paciência. Receber turistas é bom, mas gera desconfortos também. Além de visitantes, queremos o fim das valas negras e das faltas de água e luz. Se isso não acontece na São Clemente, por que ocorre aqui, se hoje nós também pagamos impostos? Eu espero que haja mais ordem, progresso e respeito não só na favela, mas em todos os lugares. Temos que cobrar isso do poder público. O Estado tem que rever suas práticas, pesquisar mais, conversar melhor.
(Valdeci Pereira, pastor e morador do Santa Marta, que tem UPP desde 19/12/2008)
A população no Alemão vivia com um poder paralelo tomando conta, mas era diferente do que a gente vive hoje. Existia violência, porque tinha o poder paralelo e a investida da polícia, mas havia menos trocas de tiro. Aí veio aquela ocupação cinematográfica com violência. Com a saída do exército, e a entrada da polícia, começou a desestabilizar. Os primeiros policiais eram treinados para UPP, depois chegaram os do Bope e da PM. No Alemão, a forma como a polícia entrou nunca traria solução. Entrou com a violência, mas não entrou com a política. Hoje vivo num território ocupado por duas facções: tráfico e a polícia. A UPP virou um posto policial de antigamente, com profissional sem colocar a cara para fora da cabine, em risco 24 horas. Não são vistos como pessoas normais, mas como monstros pela comunidade. Matam para se defender, acabam atirando em criança, causando temor e ódio. Onde deveria ter UPP é nas fronteiras, para segurar a entrada de armas. O jovem daqui às vezes não sabe andar até o shopping, como tem um fuzil?
(Lucia Cabral, do Educap, moradora do Complexo do Alemão, com UPP desde 30/05/2012)
Fica claro que a UPP não buscava a tranquilidade de um bairro com classe trabalhadora. Há uma relação óbvia com Olimpíadas e Copa do Mundo. Era o trajeto de atletas e de pessoas que vieram para os jogos. Estourou o nível de conflito após as olimpíadas. Fica evidente que não foi planejado para quem vive na cidade. É uma maquiagem destes territórios. A Cidade de Deus era uma favela com conflitos, dominada de traficantes. Havia tiroteios de madrugada. Imediatamente após a UPP teve melhora, com investimento publico e privado, mas se fosse um sucesso estaria sendo agora, e não teria uma guerra. Para pensar a Cidade de Deus temos que pensar o futuro da cidade. O bairro é conhecido mundialmente como Copacabana, mas é popular, e sofre com dificuldades socioeconômicas. Temos que pensar segurança pública sem rancor contra bairros pobres. Pessoas preocupadas com estes espaços têm de ser convidadas a pensar. Enquanto tiver gente da Zona Sul pensando a segurança pública da favela, nunca será o suficiente.
(Vivi Salles, socióloga e moradora da Cidade de Deus, que tem UPP desde 16/02/2009)