Anunciado em 2010 como grande legado olímpico, o concurso do programa Morar Carioca previa a contratação de escritórios para a realização projetos urbanísticos e arquitetônicos, entre 2013 e 2016, em comunidades pré-selecionadas. Hoje, o programa é alvo de críticas por atrasos e por não cumprir as promessas de urbanização e integração.
Foto: (Bairro Proletário do Dique, em Vigário Geral, é uma das comunidades contempladas no concurso. O projeto foi entregue, mas ainda não há previsão de licitação das obras - Mariana Gil/EMBARQ Brasil)
Em 2010, o Programa de Integração de Assentamentos Precários Informais, mais conhecido como Morar Carioca, foi divulgado como um dos principais legados sociais dos Jogos Olímpicos de 2016. O objetivo era grandioso: urbanizar todas as favelas do Rio de Janeiro até 2020. O anúncio do novo programa foi feito ao lado do lançamento de um grande concurso público de arquitetura e urbanismo. A parceria entre a Secretaria Municipal de Habitação e o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) selecionou 40 escritórios de arquitetura entre 86 inscritos. Hoje, o Morar Carioca é alvo de críticas por não ter cumprido a meta de urbanizar e integrar as favelas da cidade.
As informações sobre o concurso são contraditórias. Segundo o IAB, dos 40 vencedores do concurso, apenas dez foram contratados pela prefeitura desde 2012. Procurada pelo Vozerio, a Secretaria Municipal de Habitação afirmou que 18 já foram contratados. No entanto, a assessoria de imprensa do órgão informou por email que não possui uma "relação nominal dos escritórios". Contraditoriamente, em maio do passado, a SMH afirmou em reportagem que "o número chegava a 19 contratados".
O Vozerio contatou representantes dos dez escritórios mencionados pelo IAB. Desses dez, três estão com o contrato suspenso; um pediu rescisão e apenas um confirmou estar realizando obras: o escritório Heitor Derbli. O único escritório que preferiu não fornecer informações foi o Hector Vigliecca e Associados, responsável por comunidades em Vila Isabel e Engenho Novo. A assessoria de comunicação da empresa informou por email que, “como se trata de um projeto ainda em desenvolvimento, não temos autorização para divulgá-lo”. Já a Secretaria negou que apenas um escritório esteja em fase de realização de obras, mas não nomeou quais seriam os outros escritórios em atividade.
Entrevistados, profissionais ligados ao programa relataram ao Vozerio um esvaziamento do Morar Carioca e reclamaram que os investimentos feitos se concentraram em obras de infraestrutura, deixando de lado iniciativas voltadas para o desenvolvimento local e a integração aos espaços ditos “formais” da cidade. Para Luiz Fernando Janot, presidente nacional do IAB e ex-coordenador das atividades do concurso — hoje o IAB não faz mais parte do convênio —, o Morar Carioca “ficou limitado a algumas intervenções e perdeu sua força". As obras tinham que ter um caráter cirúrgico de definição do objeto e de relação com a comunidade. Mas isso não é do interesse das empreiteiras. Para nós, esse era o principal legado das Olimpíadas de 2016 e foi para o brejo", criticou o arquiteto.
Presidente do IAB no Rio de Janeiro, o arquiteto Pedro da Luz completa: "O programa se desfez. São ações excessivamente pontuais e intervenções para dar uma pequena qualificação que não é efetiva na favela. Isso é muito triste e frustrante porque o Rio de Janeiro sempre teve de forma continuada programas de urbanização de favelas. Hoje não tem mais." Em resposta às críticas, a Secretaria Municipal de Habitação afirmou que foi preciso "adaptar os projetos e as possibilidades dos investimentos a realidade local".
Concurso é, na verdade, segunda fase do programa
Quando o concurso coordenado pelo IAB foi anunciado, já estava em andamento a primeira fase do Morar Carioca, com projetos e obras coordenados pela Secretaria Municipal de Habitação. O concurso, foco desta reportagem, seria a segunda fase, prevendo a a urbanização de 218 assentamentos precários entre 2012 e 2016. O plano era que os projetos dos escritórios seriam realizados entre 2012 e 2013, e as obras, entre 2013 e 2016. A página do Morar Carioca no site da Secretaria Municipal de Habitação apresentava até 4 de agosto de 2015 28 projetos oficiais. Integram a lista de projetos em realização apenas os destinados às localidades da Barreira do Vasco e Vila do Mexicano, nos bairros de Vasco da Gama e Caju, respectivamente, ambas do escritório Heitor Derbli.
O edital do concurso informava que o "Morar Carioca" é parte do Plano Municipal de Integração de Assentamentos Precários Informais, também nomeado de Proap III (o Favela Bairro seria o Proap I e II). As áreas escolhidas para a intervenção do concurso foram divididas em agrupamentos — conjunto de comunidades ou áreas especificas — que seriam beneficiados por intervenções e objeto de pesquisa para extensos e detalhados diagnósticos locais das comunidades e do seu entorno.
Os projetos de arquitetura e urbanismo previam o planejamento de intervenções de natureza urbanística, paisagística, arquitetônica, ambiental e de infraestrutura, entre outros aspectos. A Secretaria Municipal de Habitação é a responsável pela licitação das obras e contração das empreiteiras, após a entrega dos projetos pelos escritórios.
Entretanto, a um ano das Olimpíadas, o legado prometido está longe de se concretizar. Dos aprovados no concurso, 22 — segundo a Secretaria de Habitação — ou 30 — segundo o IAB — ainda esperam a contratação, ainda que tenham participado de várias etapas, como reuniões e entrega de documentos. Segundo Floriano Freaza, do escritório FFA Arquitetura e Urbanismo, localizado na Bahia, por dois anos sua equipe fez várias viagens ao Rio por conta do concurso.
Um dos escritórios que chegaram a fechar o contrato, o Aucasulo, responsável por comunidades nas áreas de Praça Seca e Tanque, explicou em nota: “não se tem ciência sobre a contratação dos demais vencedores do referido Concurso Morar Carioca. Sabe-se, também, que o processo demorado das demais contratações e as mudanças ocorridas no direcionamento da política de urbanização municipal de favelas — contrariando o Edital do Concurso, ao privilegiar apenas o aspecto da infraestrutura —, fez com que as expectativas dos Arquitetos e Urbanistas (e outros profissionais exigidos para esse tipo de trabalho multidisciplinar) se esvaíssem e, com isso, muitos escritórios declinaram dos seus contratos”.
A Secretaria ainda afirmou que "a previsão das licitações serão ao longo da etapa do planejamento estratégico que vai de 2013 a 2016", como previsto no edital. Mas para os outros 22 escritórios selecionados no concurso "não há previsão à curto prazo".
Urbanização de favelas
A promessa do Morar Carioca era ir além do Favela Bairro (1994 a 2009), programa reconhecido e premiado internacionalmente, que colaborou para a consolidação de ações públicas de urbanização das favelas e atuou em 147 comunidades, além de realizar 138 intervenções localizadas. Ambicioso, o Morar Carioca envolvia mudanças mais profundas nas favelas, ampliando a acessibilidade com a construção de vias e planos inclinados, criando conjuntos de apartamentos que permitiriam a liberação de espaços de recreação e lazer e prevendo também ações como coleta seletiva, captação de água de chuva.
"É importante atuar massivamente no território e não escolher só uma parte. Achávamos que o Morar Carioca, como sucedâneo do programa Favela Bairro, teria essa dimensão de atuar expansivamente na cidade do Rio de Janeiro", diz Pedro da Luz, do IAB, lamentando o esvaziamento do programa.
Em um artigo de 2013, Antônio Augusto Veríssimo, coordenador de Planejamento e Projetos na SMH entre 2009 e 2013, mostra o volume de recursos destinados a projetos de urbanização de favela na cidade do Rio de Janeiro desde anos 80 até 2020. O gráfico abaixo mostra a importância do tema para “agenda social e política da cidade”, diz Veríssimo.
No entanto, o arquiteto e urbanista assinala que, dos 8,5 bilhões de reais (cerca de US$ 5 bilhões em 2011) planejados para todo o programa Morar Carioca até 2020, apenas 300 de milhões de dólares ( foram acordados até hoje entre o Governo Federal e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para as obras do Ciclo 2. No site do BID, é possível encontrar essa informação, sendo que metade do dinheiro seria uma contrapartida da prefeitura. Até a data do documento, 30 de junho 2015, apenas US$ 47 milhões realmente foram repassados pelo BID. Antônio Augusto Veríssimo explica: “as obras vão sendo feitas aos poucos e dinheiro vem aos poucos também”.
Por isso, o programa até já foi apelidado por arquitetos de ’Demorar Carioca’. Segundo a SMH, "existem outras fontes de financiamento para o Programa, além do BID, como Caixa Econômica e também recursos próprios". A SMH não detalhou as ifnormações.
Enquanto a execução tarda, a realidade nas favelas muda e pode tornar os projetos já realizados obsoletos, pontuam arquitetos. “Resta saber se o Morar Carioca irá garantir no prazo previamente estimado a integração plena das comunidades informais do Rio de Janeiro. Hoje fica a incerteza sobre a realização das obras dos projetos que ainda estão sendo elaborados. Enquanto isso, as favelas mantêm a dinâmica de transformação constante dos sítios (edificando irregularmente), e isso obrigará novas adequações nos projetos que forem finalizados”, conclui o escritório Aucasulo, em nota.
Veja onde ficam as comunidades que seriam contempladas pelos projetos dos escritórios contratados para o programa Morar Carioca:
Construção do corredor expresso ’Transolímpica’ causou a suspensão do contrato com o escritório Corcovado
Segundo arquitetos, desenvolvimento social e econômico e participação foram reduzidos