Além dos grupos profissionais, rodas de choro ainda resistem na cidade e injetam sangue novo na tradição carioca
Tão importantes quanto os conjuntos profissionais — como os vinte que lotaram a Praça Tiradentes no último final de semana de abril durante o VI Festival Nacional do Choro — são os pequenos grupos regionais que surgem espontaneamente nos diversos cantos da cidade. Antes de haver qualquer tipo de escola formal, era por meio desses grupos, presentes nos quintais, nas casas e nas ruas, que se fazia a maior e mais natural divulgação do choro. Mesmo que mais dispersa, a tradição se mantém.
São as famosas rodas de chorões, músicos que aprendem a tocar o repertório e a levada do choro ouvindo quem chegou primeiro. Nessa convivência cotidiana, às vezes passam anos ali, até que arriscam seus primeiros acordes e improvisos e vão aos poucos entrando na roda também.
Foi assim na casa dos irmãos Miro do Cavaco, Olavo do Bandolim e Rodrigues 7 cordas, na rua Felício, em Cascadura. “No início dos anos 1940, os três vieram de Ubá, sua cidade natal, para o Rio de Janeiro; e, mais precisamente em 1948, os três, pelo simples fato de ensaiar no quintal de casa, chamaram a atenção de vizinhos, músicos, cantores, todos passantes. Os passantes, em breve tornaram-se amigos e os ensaios a três no quintal de casa tornaram-se uma roda de choro que conseguiu brava e heroicamente adentrar os primeiros anos de Séc. XXI, quando o último dos irmãos faleceu”.
Quem conta esta história é o músico Abel Luiz, também conhecido como Sivuquinha. Hoje com 33 anos, Abel diz que essa roda foi referência para muito chorão de hoje. “Do amador ao mais alto profissional, muita gente boa passou por aquela casa”.
Profissional há 20 anos, ele toca violão, cavaquinho e bandolim, coincidentemente (ou não?) os três instrumentos tocados pelos irmãos chorões de Cascadura. “Fui criado em roda de choro e toco desde que me entendo por gente. Nasci no Engenho de Dentro e frequentei muito essa casa, assim como outras rodas na Zona Norte, na Zona Oeste e na Baixada. Muitas rodas surgem e somem, mas outras sempre aparecem”, diz Sivuquinha.
Hoje, essas rodas nas casas particulares são mais raras, e só mesmo quem é músico e íntimo do gênero sabe quando uma delas vai rolar. Mas os encontros musicais continuam nas ruas e nos bares, regados a cerveja e abertos a quem quiser chegar. Desde, é claro, que não queira sair tocando e se exibindo sem ser convidado.
Perguntado sobre a etiqueta das rodas, Abel Luiz, que é também um intelectual e estudioso do assunto, ensina: “Cada roda de choro tem seu modus operandi, mas há uma coisa comum entre elas, que diz respeito à própria cultura da roda, originária África. O choro nasceu no subúrbio, onde a imensa maioria da população era negra e pouco letrada, em que o conhecimento era transmitido oralmente, em que os mais velhos têm prioridade porque viveram mais e, portanto, conhecem mais. Não é que quem é novo não pode tocar. Pode, claro, mas é importante as pessoas entenderem o que é aquela forma de se relacionar, que não é imediatista nem de exibição. É um conhecimento que pressupõe uma convivência, uma construção de relação, um respeito a quem está ali há mais tempo”.
O velho também se renova
"Grandes músicos da velha guarda também continuam injetando sangue novo no choro." Abel Luiz, músico
Sabendo disso, quem quiser ouvir e tocar choro tem um vasto cardápio de rodas para escolher (veja o mapa no final da matéria). O próprio Sivuquinha comanda um desses encontros musicais, junto com outros cinco integrantes do grupo Beliscando, todo sábado à tarde no bar Adelos, na Rua do Mercado, no Centro. Trata-se de uma típica roda de choro entre amigos, um grupo despretensioso, que reúne desde profissionais que são referência no seu instrumento até o amador recém-iniciado no gênero.
“A gente conseguiu formar um público fiel que gosta de instrumental, tocando um repertório pouco conhecido de compositores consagrados de choro e muita música inédita dos integrantes do grupo e de amigos que vêm dar canja, num encontro de chorões de todas as gerações”, explica Abel Luiz.
Ele faz questão de desmistificar a ideia de que o choro se renova só com o pessoal jovem que vem chegando. “Na verdade o novo tem pouco a ver com faixa etária, mas com modelo estético. Grandes músicos da velha guarda também continuam injetando sangue novo no choro, como o cavaquinista Siqueira, que chegou a tocar com Pixinguinha, e está aí no auge, compondo e tocando. No ano passado, ele lançou seu primeiro cd e agora está viajando para vários países divulgando o cavaquinho brasileiro”. Esta é a beleza do choro.
“O choro é uma música viva, que está conversando com o que acontece na cidade, num repertório melódico, de sociabilidade, que nos permite construir diálogos com outros discursos sonoros. A cidade de hoje não é a do século 19 e o choro absorve isso também e nos permite promover encontros e estimular reflexões”, filosofa Abel Luiz.
Novos grupos levam adiante o mais antigo gênero musical da cidade, que ganhou sede própria com direito a show na hora do almoço