O que o Porto Maravilha e o Minha Casa, Minha Vida têm em comum? Para Raquel Rolnik, as duas iniciativas fazem parte de um processo global que enxerga a habitação como bem e não como direito. A urbanista explora o assunto em Guerra dos Lugares, seu novo livro, lançado nesta semana no Rio
(Foto: Bruno Itan/ Coletivo Alemão)
"Como esta mulher brasileira ousa vir aqui avaliar a política habitacional do Reino Unido?" A frase, dita em 2010 por um parlamentar britânico, abre Guerra dos lugares - A colonização da terra e da moradia na era das finanças, novo livro da urbanista Raquel Rolnik. Lançada num evento realizado nesta segunda (7) no Museu da República, a obra aborda a transformação da habitação de política social em ativo financeiro amplamente negociado ao redor do mundo.
O livro é fruto da atuação de Raquel como relatora especial da ONU sobre direito à moradia adequada entre 2008 e 2014. Neste período, a urbanista produziu mais de 20 relatórios sobre o tema e visitou diversos países para entender o problema numa perspectiva global. Entre eles, a Inglaterra.
A obra é dividida em quatro partes. A primeira traça um panorama histórico das políticas habitacionais em diversas partes do planeta. A segunda aborda as mudanças que levaram políticas habitacionais a dar lugar ao chamado complexo imobiliário-financeiro. A terceira mostra como esse processo se deu no Brasil. Já a quarta apresenta iniciativas que, na opinião da autora, apontam para o futuro do tema no mundo. Um trecho dessa última parte foi disponibilizado na internet pela editora Boitempo, responsável pela publicação.
O livro foi considerado "uma obra fantástica" pelo geógrafo David Harvey, que está no Rio esta semana para um ciclo de palestras. Suas 424 páginas reúnem fotos, gráficos, mapas, relatos em primeira pessoa e outros elementos para destrinchar um assunto que desperta muito interesse. No evento realizado no Catete, Raquel falou pouco mais de 30 minutos para um auditório lotado e interessado em saber mais sobre o tema. Confira aqui alguns dos melhores momentos da palestra.
" Quando dei início aos trabalhos em 2008, fui aos Estados Unidos para tentar entender a crise financeira hipotecária. Depois disso, estive no Cazaquistão, um local onde ninguém tinha ido ainda estudar esse assunto. Ao chegar, encontrei milhares de pessoas em greve de fome após perderem tudo com a crise. Elas tinham investido o dinheiro da poupança em imóveis, mas as construtoras europeias responsáveis pelas obras faliram e os prédios ficaram pela metade.
Trabalhei não só em países do sul, mas também nos do norte. Na apresentação dos resultados na Espanha, entrei em contato com o movimento dos hipotecados. Em 2011, vi protestos em Tel Aviv (Israel) por causa da falta de moradia. Tudo isso inspirou o livro, que trata não de uma conspiração, mas de um processo: a transformação da habitação, de uma questão de política social num ativo financeiro, um novo campo de investimento."
" Os governos de Margaret Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, são matrizes importantes para a construção desse novo paradigma, que se estabeleceu por meio da destruição das políticas de habitação. No Reino Unido, imóveis que antes eram alugados a preços baixos foram privatizados. Em muitos casos, moradores foram transformados em proprietários. Isso facilitou o uso da moradia como caixa eletrônico, no qual o cidadão faz a hipoteca de sua residência e usa o dinheiro para consumir.
Esse modelo da hipoteca foi implantado na Inglaterra, na Espanha e nos Estados Unidos. No último país, na década de 1930, o New Deal estabeleceu duas frentes de ação em relação à política habitacional. Uma delas foi a criação de um estoque de moradias para aluguel. A outra, o estabelecimento de um sistema de financiamento hipotecário, a princípio muito utilizado na construção dos subúrbios norte-americanos. Ele permitiu a estigmatização dos bairros centrais como locais perigosos, por reunirem uma grande população de negros e hispânicos.
Com o tempo, os conjuntos habitacionais onde vivia parte dessa população passaram a ser vistos como enclaves de pobreza. A solução dada por Reagan foi a demolição desses espaços. Essa política foi acompanhada do fim do financiamento da construção e manutenção desses conjuntos e do aumento de oferta de crédito para os mais pobres poderem financiar novos imóveis, o chamado subprime. Só que, no mundo financeiro, empréstimo de risco é sinônimo de juros altos. Quanto mais pobre é quem pede, piores são as condições de pagamento.
Esse cenário veio à tona com a explosão da bolha em 2008, quando a desvalorização dos imóveis fez com que várias pessoas passassem a dever mais do que possuíam e terminassem perdendo suas casas."
Estamos, portanto, diante de uma “guerra dos lugares” ou de uma guerra “pelos lugares”. (...) Como toda guerra, esta é marcada pelo confronto e pela violência.
(Trecho do livro Guerra dos Lugares, de Raquel Rolnik)
"Outro modelo que transformou habitação em ativo foi criado no Chile, na década de 1970, durante a ditadura do Pinochet. Ele surgiu para eliminar os campamientos, aglomerações habitacionais populares que reuniam um grande número de pessoas no centro de Santiago e outras cidades. A ideia básica desse modelo é o subsídio por parte do governo para a compra de casas na periferia. Qualquer semelhança com o Minha Casa, Minha Vida não é coincidência.
Brasil e México são alguns dos países que optaram por essa alternativa. Nela, a oferta de imóveis na periferia representa a retirada de moradias populares dos espaços valorizados da cidade. É o que Banco Mundial chama de "unlock land values", ou seja, destravar o valor da terra. Uma terra bem localizada tem que render o máximo que pode em termos financeiros e não em relação ao que a cidade demanda.
Esse é o princípio de projetos como o Porto Maravilha, que criam uma zona com objetos para um público AAA. É o mesmo produto em todo o mundo, fruto de um processo de captura do espaço urbano por uma lógica de capital de investimento com pouca ligação com as necessidades da cidade. Nesse contexto, o único modelo de moradia permitido é aquele que pode ser negociado pelo capital financeiro. Favelas e outras formas alternativas de habitação são fragilizadas."
" A terceira parte do livro explica como a política habitacional neoliberal chegou ao Brasil justamente num governo de coalizão que defende que produziu inclusão para os mais pobres. Dou algumas dicas de por que isso aconteceu.
Uma das peculiaridades do complexo imobiliário-financeiro do Brasil é o fato de ele ter 100% de financiamento de fundos públicos, como a Caixa Econômica Federal e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Verifiquei que os atores central desse processo por aqui têm sido as grandes empreiteiras, as mesmas que estão com os donos presos na carceragem em Curitiba.
Neste momento, em que estamos discutindo corrupção, é preciso ter em mente que ela é um problema que vai além do campo eleitoral. Hoje, são as empreiteiras que decidem o que vai ser feito nas grandes cidades. E o Porto Maravilha é o exemplo mais eloquente da relação problemática entre essas empresas e estado.
Só para vocês terem uma ideia, o governo enviou recentemente ao congresso uma MP (medida provisória) que vai dar às empreiteiras o poder de elas mesmas fazerem desapropriações. As pessoas não tem falado sobre isso."
(Trata-se da MP 700, que tem texto disponível no seguinte link: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Mpv/mpv700.htm).
"Se eu terminasse o livro na terceira parte, quem lesse ia querer se matar. Por isso, escrevi uma quarta parte que chamei de "Porosidades e resistências" e que, embora seja pequena, considero essencial. Ela aborda iniciativas envolvendo novos atores, principalmente a juventude, que questionam o modelo existente por meio da construção e exercício de resistências e alternativas.
A política urbana neoliberal está morta, porém dominante. Ela não consegue mais dar respostas e, por isso, as cidades estão se sublevando no Brasil e no mundo.
No último sábado, fizemos o lançamento desse livro na Vila Autódromo. Considero que foi um ato emblemático, porque o que acontece hoje ali é exatamente o que o livro retrata. E o livro existe para lembrar a todos que estamos vivos, estamos aí."
Raquel Rolnik em Vila Autódromo.
Publicado por Cynthia Gorham em Sábado, 5 de março de 2016
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