Prefeitura do Rio pretende concluir até o fim do ano mapa dos terreiros de umbanda da cidade. Iniciativa surge após religião se tornar patrimônio imaterial carioca. Entretanto, intolerância com cultos de matriz africana ainda é preocupação
Foto: Sessão de Umbanda realizada na festa da União Espiritista de Umbanda do Brasil, no Rio de Janeiro, Brasil (Domínio Público/Wikimedia)
O Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH) deve divulgar até o fim de 2017 um mapeamento completo de todos os terreiros de umbanda da cidade do Rio de Janeiro. A valorização da religião é um dos objetivos da iniciativa coordenada pelo órgão ligado à prefeitura. Estima-se que existam cerca de 850 espaços do tipo espalhados pela região metropolitana fluminense (RMRJ).
A primeira instituição cadastrada no levantamento foi a Tenda Espírita Vovó Maria Conga de Aruanda, localizada no Estácio. A escolha não foi à toa, já que o terreiro foi o responsável pelo pedido de reconhecimento da umbanda como patrimônio imaterial carioca. Aceita, a solicitação foi oficializada por meio do decreto 42.557, de novembro de 2016, e colocou à religião em pé de igualdade com outras manifestações típicas do Rio, como a Feirinha da Pavuna, o Fla-Flu e os botequins tradicionais. Ao todo, 53 bens imateriais fazem parte do registro da prefeitura, que justificou a entrada da umbanda na lista por conta da necessidade de respeito à diversidade religiosa e de políticas públicas que destaquem a importância de cultos de matriz africana. “A umbanda tem a mesma relevância histórica que o samba para a formação do Rio e da cultura carioca, embora isso não seja reconhecido por diversas razões. Por outro lado, resta saber se virar patrimônio imaterial vai, por exemplo, diminuir a ocorrência dos assustadores casos de intolerância religiosa contra os adeptos do culto”, comenta o historiador Luiz Antônio Simas.
Os números ligados à intolerância religiosa contra os praticantes de umbanda na RMRJ são escassos. Mas alguns indicadores ajudam a medir tamanho do problema. De acordo com estatísticas do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos, 1.014 casos de violência religiosa foram registrados no território fluminense entre julho de 2012 e agosto de 2015. Desse total, 71% tiveram como vítimas adeptos de religiões afro-brasileiras, 7,7% evangélicos, 3,8% católicos, 3,8% judeus e ateus e 3,8% envolveram ataques à liberdade religiosa de maneira geral. No ranking dos estados com maior quantidade de registros entre 2011 e 2015 no Disque 100, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, o Rio está entre os três primeiros - ao lado de Minas e São Paulo. Para Simas, o racismo está na raiz dessa situação. "Atualmente, esse preconceito é ainda mais alimentado, e ganha novos contornos, na disputa pelo mercado da fé, cada vez mais intensa a partir do crescimento vigoroso de algumas designações evangélicas neo-pentecostais", acrescenta ele.
Vale lembrar que, no passado, o atual prefeito do Rio Marcelo Crivella já deu declarações contundentes em relação a religiões afro-brasileiras. Bispo licenciado da Igreja Universal, ele lançou em 1999 o livro Evangelizando a África, que afirma que os cultos de origem africana abrigam “espíritos imundos”. A obra veio à tona durante a campanha eleitoral do ano passado, quando Crivella definiu a declaração como um “lamentável erro”. Nas comemorações de sua vitória, no Cassino Bangu, ele fez questão de agradecer aos umbandistas pelo apoio.
O surgimento da umbanda aconteceu no começo do século XX. Por volta de 1908, um jovem chamado Zélio Fernandino de Moraes passou a apresentar um comportamento estranho, adotando a postura de um velho e dizendo coisas incompreensíveis. Por recomendação de um amigo, a família o levou em 15 de novembro daquele ano a uma sessão na Federação Espírita de Niterói, então presidida por José de Souza. Convidado a sentar na mesa, Zélio recebeu uma sucessão de espíritos que se apresentavam como índios e negros. Incomodado com o suposto atraso espiritual das entidades, José pediu que elas deixassem a sessão. “Por que repelem a presença desses espíritos, se nem sequer se dignaram a ouvir suas mensagens? Será por causa de suas origens sociais e da cor?”, respondeu Zélio incorporado. Logo em seguida, ele anunciou que criaria no dia seguinte uma nova religião na qual espíritos de negros e índios poderiam dar sua mensagem sem serem repreendidos.
"Será uma religião que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmãos, encarnados e desencarnados. E se querem o meu nome, que seja este: Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque não haverá caminho fechado para mim"(Frase dita pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas por meio de Zélio de Moraes durante sessão espírita que deu origem à umbanda, realizada em 15 de novembro de 1908 em Niterói)
Conforme o prometido, Zélio fundou em 16 de novembro de 1908 a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade (TENSP). Nela, as entidades barradas nos centros espíritas poderiam trabalhar em auxílio dos vivos, não importando cor, raça ou posição social. A TENSP existe até hoje e funciona em Cachoeiras de Macacu. "Aos poucos, a umbanda foi crescendo e se consolidando. Na década de 1930, já era uma força no Rio de Janeiro”, conta Simas. Na opinião de estudiosos, a anunciação de Zélio apenas coroou um longo processo de amálgama dos ritos de ancestralidade dos bantos, dos calundus, pajelanças, catimbós, encantarias, cabocladas e afins, que deram origem a um culto fortemente marcado pelo sincretismo. Além disso, a umbanda é a única religião criada na região metropolitana do Rio.
Apesar de muitas vezes confundidas pela matriz africana comum, candomblé e umbanda são religiões diferentes. Enquanto a primeira envolve deuses africanos sem influência de outras culturas, a segunda sincretiza tradições kardecistas, cristãs, indígenas e africanas. “De forma resumida, o candomblé cultua orixás, voduns e inquices que representam energias vitais de fragmentos encantados da natureza e tem a ancestralidade como princípio de coesão de grupo. Já a umbanda celebra caboclos, preto-velhos, boiadeiros, ciganas, povo de rua, crianças e outros espíritos”, explica Simas.
Segundo ele, outra diferença importante está na forma como se dá o culto. No candomblé, se dá o chamado transe de expressão. A yaô expressa no transe a natureza do orixá que mora nela e que se manifesta após procedimentos iniciáticos. Porém, na umbanda, acontece o transe de incorporação. Nele, a entidade que o médium recebe interage com os viventes por meio de passes, consultas, etc. “Registro que essa resposta é bem introdutória", adverte Simas.